(Vitória Seráfico* / fev. 2024)
(De início, esclareço que sou intransigente com o dever que
todos nós temos, de respeitar e tratar bem os animais, na mesma
medida com que devemos tratar bem e respeitar qualquer pessoa).
“Eu não sou cachorro, não, pra viver tão humilhado”
Não sei quando morreu Waldick Soriano. Mas de uma coisa
estou certa: vivo estivesse, e seria enorme a sua frustração, vendo
ruir todo o sucesso que fez a sua música, em 1972.
Na verdade, Waldick viveu na época em que cachorro era
tratado (não maltratado!) como cachorro, mesmo. Vivia no quintal,
como guardião da casa contra ladrões e qualquer outro tipo de
malfeitores. Tomava banho todos os dias, com água e sabão, tarefa
geralmente atribuída a um empregado. O sabão era até conhecido
como sabão de cachorro. Lembra? Alimentava-se (bem) com
ossos e sobras da mesa de seus donos – hoje, tutores. Dormia no
porão, num cantinho qualquer escolhido por ele mesmo, ou, muitas
vezes, numa caminha que seus donos lhe ofereciam, pra lhe
garantir mais conforto. Atendia por nomes consagrados nas
certidões de nascimento caninas: Totó, Tupi, Peri, Fox, Rex e
outros mais ou menos originais. Na minha casa, havia o Piloto. Até
ser descoberto que era fêmea: estava grávida. Então, virou Pelota.
Além de tentar minimizar a indignação da mamãe, coube ao papai
– louco por cachorro! – escolher o nome do filhote: Craque. Ficou
sendo o craque da pelota, como eram chamados os jogadores de
futebol daquele tempo – década 1950.
Na era Waldick, também não havia agenda social para cães
ou qualquer animal doméstico. Compromisso social era coisa de
gente. Por maior que fosse a estima de seus donos por eles, o
espaço de cada um era restrito ao quintal ou a lugar reservado, na
casa. Não participavam de desfiles, não apareciam na televisão, não
visitavam os amigos do dono. Enfim, tinham vida ... de cachorro.
No bom sentido.
Mas as coisas mudaram. E muito! Aqui vai meu aplauso ao
desenvolvimento da Medicina Veterinária, que, hoje, dispõe de
meios capazes de detectar qualquer problema de saúde em animais,
com um amplo leque de especialidades que apresenta e de técnicas
cirúrgicas as mais diversas. Além de excelentes clínicas do ramo.
No bojo dessas mudanças, convém registrar atitudes que, a
princípio, nos causavam espanto; por exemplo, cachorro em
carrinho de bebê. A mãezinha aparece empurrando um carrinho, e
você, cheio de curiosidade, debruça-se pra ver o neném. É um
cachorro!
Tenho a impressão de que os salões de beleza convencionais
estão perdendo freguesia, porque a prioridade agora é o cuidado
com a aparência do bichinho de estimação, macho ou fêmea. São
gastas fortunas, pra que o animal volte pra casa banhado,
perfumado, dentes escovados, cabelos bem cuidados. Será que as
crianças da casa também recebem estes cuidados especiais?
Quem gosta de osso é cachorro. O quê? Foi-se o tempo!
Hoje, cachorro nem reconhece um pedaço de osso. Nossos
cãezinhos são muito bem alimentados, com rações caras,
específicas para cada tipo (ou raça, não sei bem), e de acordo com
o peso, idade etc. Que tal?
Atualmente, quando você for receber um amigo em sua casa,
fique certo de que o cachorro irá também. Mesmo que não seja do
seu feitio ver cachorro sentado no seu sofá, prepare-se: ele já faz
parte da família. Alguns até são tratados de meu filho. E nem
pense em recusar a presença do animal: é crime! Você pode até
recusar a presença do filho do visitante, mas do cachorro, nunca!
Então, você é obrigado a permitir que o bicho deixe seus pelos,
suas pulgas e mais o que houver, no assento do seu sofá, tão bem
cuidado. Não se esqueça de que há pessoas que até dormem com o
cachorro, na cama.
Outro detalhe: quando fizer uma viagem aérea, não se
surpreenda se, na poltrona do lado, estiver um au-au. A lei permite
(mais) este absurdo.
Mais um lembrete: quando encontrar alguém aconchegando
algo no colo, evite o vexame de perguntar se é menino ou menina.
Pergunte se é macho ou fêmea.
Sim, porque colo de mamãe e de papai atualmente é
exclusividade dos bichinhos. Não mais dos filhinhos.
Lembre-se: agora, cachorro tem vida social. São visitas,
desfiles, aparições na internet e muito mais. Também frequentam
festas e reuniões. Até nos shoppings já é permitida a entrada de
cachorros – e de outros animais, com certeza.
Também é bom lembrar que já existem festas de aniversário
de cachorro. Isto mesmo. Com direito a bolo de velas, “parabéns
pra você”, fotografias e tudo o mais que você faria pra festa de seu
filho. E mais: convite impresso!
Porém, um dos itens que mais chamam nossa atenção é o
nome que os bichinhos recebem. Totós, Tupis e Peris fazem parte
do passado. Hoje, nossos gatos e cachorros são conhecidos pelo
mesmo nome que demos aos nossos filhos, na pia batismal. Soraia,
Thaís, Letícia, Leonardo, Theo já não são nomes só de gente. A
qualquer instante, você se depara com uma Carol, Kátia, Diana,
coberta de pelos.
Uma ocasião, caminhando no CAN, eu ouvia,
insistentemente, uma senhora chamar:
- Vitória! Vitória!
Olhei pra todos os lados, mas não consegui descobrir quem
me chamava tanto. Até que percebi: era uma vitória peluda,
malhada preto e branco, com vestidinho e lacinho na cabeça.
Outra vez, encontrei um Yuri, de gravatinha borboleta e
roupa que imitava um fraque. A tutora dele não disfarçava a alegria
de vê-lo chamando a atenção de quem passava.
Outro direito que cachorro tem, agora, é emoldurar a janela
do carro do dono. A janela, antes prerrogativa das crianças
(brigávamos por causa da janela), hoje é cadeira cativa do
cachorro. E ponto final.
Pelo que se tem visto, é fácil concluir que há pessoas (mães,
sobretudo) que dão mais atenção ao cachorro do que às suas
crianças. Pra elas, existe a babá. “Ela é paga pra isso: banhar,
cuidar, alimentar meus filhos ...”
Também sei de alguns casos em que o casal opta por não ter
filhos: prefere criar cachorro. O que dizer disso?
Por estas e outras, percebe-se que as coisas estão tomando
rumos até certo tempo inimagináveis.
Aliás, vida de cachorro está tão boa, mas tão boa, que já há
pessoas que pretendem, na próxima encarnação (?), voltar ao
mundo como cachorros, tantos os direitos por eles adquiridos – e
respeitados.
Olhando pra frente, arrisco uma profecia: pra viver melhor,
vai chegar o tempo em que nós, ditos seres humanos, vamos
precisar ter algo como, digamos, complexo de cachorro.
Eu acho que estou no caminho certo. Já faço a minha parte:
adoro colar agarrado no pescoço, tipo coleira.
Também conheço pessoas que preferem carne com osso. Pra
poderem roer à vontade. É um bom começo.
Em resumo, considerando todos os considerandos, só me
resta um desabafo:
- bons tempos os do Waldick!
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*Formada em Letras, na Universidade Federal do Pará- UFPA, a autora é cronista, compositora e exímia criadora de peças ornamentais, com que enriquece eventos sociais da família e de quem mais a pedir para torna-los mais agradáveis. Sua marca é o bom-humor em todos os textos que cria.
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