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Utopias Amazônicas: Entre Omama a e Yoasi a

Atualizado: 12 de ago.


Em Taquiprati, 09 de Agosto de 2024


José de Ribamar Bessa Freire


Utopias Amazônicas organizado por Marcos Colón e Lúcio Flávio Pinto me traz à lembrança uma experiência pessoal com o Journal de la Société des Américanistes (JSA) editado na França desde 1895 aos dias de hoje, com artigos de pesquisadores de diferentes partes do mundo que vêm se revezando, através do tempo, no estudo do continente americano. Um breve relato dessa história permite contextualizar o livro lançado em Belém do Pará no final de abril.

Durante a pós-graduação na França, para sanar a ignorância herdada do currículo escolar, realizei leitura em ordem cronológica dos textos publicados na revista JSA referentes direta ou indiretamente à Amazônia nas áreas de arqueologia, etnologia, antropologia, linguística, história, geografia, cobrindo o amplo campo das ciências sociais e humanas. Era um mundo desconhecido para um jovem iniciante na pesquisa. Cada descoberta – e foram tantas - provocava deslumbramento e empoderamento.

No fichamento dos primeiros números, a sensação inicial era de alguém que se tornava o “dono do saber” sobre a região. Mas essa autoconfiança foi se diluindo à medida em que as leituras avançavam. É que a produção anterior não resistia ao crivo da crítica, com novos dados e novos enfoques teóricos. Relativizava-se o que antes era “verdade”. Durante a leitura, o conhecimento se adensava no meio de tantas incertezas. A cada vinte anos, a visão sobre a Amazônia era alterada, negada, criticada, enriquecida e atualizada.

Na mesa do bar em Paris

Se for assim Utopias Amazônicas, com seus 18 autores, tem garantido sua atualidade por, pelo menos, um par de décadas, assegurando, no entanto, sua permanente contribuição ao longo do tempo, como aliás acontece em qualquer campo do saber, considerando que o conhecimento científico tem prazo de validade por ser verificável e, portanto, falível, o que torna a ciência permanentemente inacabada, mas, por outro lado, um universo sempre aberto que não conhece limites de expansão.

Vão nessa direção as reflexões de Pierre Bourdieu, em 1995, sobre a história social da ciência atravessada por duas lógicas contrárias: a do campo político e a do campo científico. Mais de duas décadas se passaram desde então, o que implica a existência hoje de novos avanços também nesse campo da epistemologia.

Recentemente, o matemático Cédric Villani, agraciado com a Medalha Fields equivalente ao Prêmio Nobel (inexistente para matemática) refletiu sobre esse universo inacabado e aberto, em duas conversas com o xamã Davi Kopenawa em Paris, em 2011, na mesa de um bar de Montparnasse que, como sabemos, é um lugar ideal para reflexões dessa natureza, dependendo da qualidade do vinho e de quem participa da mesa. Intermediada pelo antropólogo Bruce Albert, lá estava também o astrofísico Michel Cassé do Comissariado de Energia Atômica e do Instituto de Astrofísica de Paris.

- Costumam me perguntar se estou em busca da equação última. Respondo que ela não existe. O universo permanecerá incompreensível para todo o sempre. Dele só compreendemos alguns fragmentos e jamais poderemos apreendê-lo definitivamente – disse Cédric naquela ocasião.  

E a Amazônia? Quais são os fragmentos que temos atualmente para compreendê-la? Digressões epistemológicas à parte, podemos afirmar que Utopias Amazônicas contém artigos de pesquisadores de excelência vinculados a várias instituições de diferentes países – Peru, Venezuela, Equador, Brasil - que estão discutindo a Pan-Amazônia, aqui analisada tanto empírica como teoricamente. Trata-se de “recuperar esses pensamentos, em vez de simplesmente contrapô-los”, buscando “vislumbrar utopias possíveis a partir deles”.  

Utopia para quem?

A Utopia tem como ponto de partida o horror do presente, horror que é também o ponto de chegada desse espelho invertido que é a distopia, como quer Marilena Chauí citada em epígrafe por Aurélio Michilles, um dos autores, para responder à pergunta inquietante: Amazônia, Utopia para quem? 

Nada escapou ao olhar atento dos autores, que partem de diferentes perspectivas para suas reflexões, inclusive destacando as dificuldades de formular avaliações sobre uma utopia, que não é monopólio de uma única região, pois os males que afetam a Amazônia são os mesmos presentes em outras partes do planeta.

O próprio conceito de utopia é questionado aqui e ali, com diferentes perspectivas de abordagem. “A Amazônia é o avesso da utopia, porque sua existência inverte os termos e significados da ideia de utopia”. Pensar assim é “um exercício de descolonização capaz de restituir ao centro do debate sobre o mundo os saberes produzidos para e com os mundos amazônicos, vozes nunca escutadas, mas capazes de nos indicar outros caminhos a seguir” – escreve outro autor, Bruno Malheiro.

Essas vozes assinalam trilhas trágicas percorridas por todos os seres vivos da floresta. Desmatamento, incêndios florestais, barragens, catástrofe climática, estradas, garimpo ilegal, envenenamento de rios, invasão de territórios indígenas, domínio do crime organizado sobre extensas áreas da região que levaram ao assassinato de Bruno e Dom, etnocídio, genocídio, glotocídio e desigualdades econômicas e sociais gritantes fazem parte dos problemas aqui abordados.

Até a alternativa do controle social por comunidades locais, que pode despertar uma fagulha de esperança, parece não ser suficiente. Um número crescente de ex-seringueiros da Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre, está abandonando o uso sustentável da floresta e a desmatando para se tornarem criadores de gado – afirma Philip Fearnside, outro articulista.

Brasa no nosso pacu

Sem eliminar o caráter utópico, alguns autores construíram uma ponte entre a utopia e a realidade avaliada como possível na Amazônia viva. Para isso, Nascimento, Arieira & Nobre propõem “cinco medidas prioritárias e emergenciais”:

1) Zerar desmatamento, degradação e fogo e restaurar o que destruímos;

2) Fortalecer as áreas protegidas onde as florestas resistem;

3) Instituir a transição para uma bioeconomia amazônica com as florestas em pé e os rios fluindo;

4) Manter a conectividade dos ecossistemas amazônicos e do rural e urbano:

5) Autenticar compromisso local, regional e global pelo bem viver na Amazônia

Puxando a brasa para o nosso pacu, uma sexta medida pode ser acrescentada: fortalecer a diversidade linguística e as línguas indígenas depositárias de saberes que circulam entre os povos da floresta.

Configura-se assim um “novo momento de resistência coletiva”, que articula as lutas de r-existência pela agroecologia e pelo direitos sociais e territoriais, incluindo os direitos linguísticos. Para tanto – escreve Edna Castro, uma das autoras - somos levados inapelavelmente a buscar “o conhecimento milenar de seus povos, de culturas e línguas diferentes, responsáveis por lhes garantir uma relação com as florestas e as águas por milhares de anos”.

Efetivamente, dados de pesquisas recentes de arqueologia, revelam a antiguidade das civilizações que ocuparam esses territórios. “Culturas foram silenciadas pelas estratégias de ocultamento do poder colonial e, se chegaram ao presente, foi pela resistência às diferentes formas de dominação social e colonial” – prossegue Edna.

Mulher indígena

A história da incorporação da Amazônia ao mercado mundial está repleta de sangue, mas também de lutas para impedir a tragédia social, étnica e ambiental, mostrando – segundo Acosta - que “outras Amazônias podem ser construídas”. Documentos ainda tímidos elaborados pelos movimentos sociais, complementados com “a dimensão de gênero na luta pela proteção dos territórios ancestrais”, ausentes ou minimizados pelos partidos políticos, mereceu capítulo à parte “pelo olhar e ação de mulheres negras e indígenas do sudeste paraense, protagonistas na luta pela defesa de projetos para a concretização de utopias” na visão de Flávia Lisbôa.

Entre essas formas de resistência da mulher indígena está a defesa das línguas por elas faladas adquiridas no colo materno. Convém lembrar a narrativa do jesuíta João Daniel, que em seu “Tesouro Descoberto no Rio das Amazonas” escrito no séc. XVIII se torna leitura sempre indispensável pelo seu caráter testemunhal. Ele conta como um missionário mandou “dar palmatoadas” em umas “tapuias”, dizendo que só parariam o castigo se elas dissessem “basta” em português ou pelo menos na Língua Geral. Mas elas, “antes se deixavam dar até lhes inchar as mãos e arrebentar o sangue”.

Na época, segundo dados de Cestmir Loukotka apoiado em documentação de arquivos, eram faladas pelo menos 718 línguas apenas na Amazônia brasileira, muitas delas vítimas depois de glotocídio. E se hoje ainda se mantém parte dessa diversidade legada para a humanidade, muito se deve à resistência da mulher indígena.

O espírito da floresta

Alguns avanços, ainda limitados, foram realizados na educação escolar indígena, em iniciativas como a do Supremo Tribunal Federal (STF) com a tradução da Constituição de 1988 em Nheengatu, assim como nos projetos de pesquisa de universidades locais. Um exemplo é o GEDAI – Grupo de Estudos, Mediações e Discursos na Amazônia da Universidade Federal do Pará, liderado por Ivânia Neves, que registrou os usos sociais das línguas indígenas, com a elaboração de mapa interativo das 34 hoje faladas no Pará e um aprofundamento da literatura oral em línguas Tupi da Amazônia Paraense.

A literatura oral recebeu a atenção de três autores deste livro focados nas “narrativas míticas que representam o universo poético e simbólico dos povos ameríndios” e constituem “uma das formas essenciais das utopias indígenas”, a mais conhecida delas – a da “terra sem males” – lembra Renán Freitas Pinto. Expressão atualíssima da utopia social – “a cidade encantada de Abaetetuba” – é poetizada como “utopia da felicidade e da harmonia social” e considerada como forma de “resistência não à modernidade, mas à desumanização materialista do mundo” – nos diz o poeta Paes Loureiro.

Já a comunidade Bari, povo nascido das sementes do abacaxi, que habita as selvas entre Colômbia e Venezuela, foi lembrada por José Quintero, que lá conversou com Benito Askeraya, falante de língua da família linguística chibcha. Ele, que lutou contra a instalação de uma mina de carvão em seu território, discorreu sobre os quatro céus: “Todos nós, os diferentes povos que habitamos o mundo, nunca chegamos a ver o mesmo céu, ou melhor, nunca a natureza, o universo e o mundo que vemos e sentimos é o mesmo para todos os povos e culturas”.

O xamã e o cientista

São essas diferenças que permitem um diálogo intercultural, como o mantido entre Davi Kopenawa e os cientistas franceses. Segundo o matemático Cédric, que nos surpreendeu por vir de uma tradição cartesiana, “foi uma conversa fascinante, que me marcou porque esse encontro com Kopenawa abriu meus olhos para as graves ameaças que pesam sobre as culturas e o ecossistema dos povos autóctones amazônicos, mas também porque permitiu uma reflexão inesperada sobre a convergência entre o papel dos xamãs e o dos cientistas em relação à sociedade, mais além das evidentes diferenças”.

No que se refere aos métodos e ao estatuto de suas produções respectivas, xamãs e cientistas – insiste Cédric - são sonhadores, antenas de um mundo invisível que ajudam os outros a estruturar seus próprios pensamentos e a se comunicar entre si.

A Amazônia reúne hoje utopia e distopia. Para os povos indígenas, a floresta já é uma utopia realizada. A distopia é sua destruição. É mais complexo do que aqui resumo, mas se trata, para os Yanomami, de luta sem trégua entre a gente do utópico Omama a - protetor da floresta, de rios, plantas e animais, contra a gente de Yoasi a – seu distópico e indesejável irmão mau, responsável por disseminar doenças, mortes, destruição e por sufocar a floresta viva, impedindo-a de respirar. 

Na expressão de Davi Kopenawa “a floresta sofre como os humanos. Sente dor quando a queimam e suas grandes árvores gemem ao cair. Elas morrem quando são incendiadas, dando lugar a uma terra seca e quente, onde vai se instalar Ohinari a – o espírito da fome.  Queremos que nossos filhos e netos possam se alimentar dela e crescer nela”.

Autores e leitores desse livro são todos gente de Omama a.  Não podemos deixar de citar aqui seus dois filhos, que organizaram Utopias Amazônicas. Marcos Colón é professor no Departamento de Línguas e Linguística Moderna da Universidade da Flórida e pesquisador de estudos literários e culturais brasileiros, com ênfase na Amazônia. E Lúcio Flávio Pinto, sociólogo e jornalista, dono de lucidez e coragem assombrosa, cujos livros e artigos arrombaram portas e abriram caminho para que aqui chegássemos. A ele, nossa admiração, nosso reconhecimento e nossa reverência.

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P.S. – Esse texto, com ligeiras modificações, é o artigo que abre o livro Utopias Amazônicas publicado em um pequeno opúsculo distribuído no V Seminário Internacional América Latina e Caribe (SIALAT) realizado em Belém de 24 a 26 de abril de 2024.

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