Concluo a leitura da obra de IASCHA MOUNK[1], após mais de dois meses. Talvez nenhum livro tenha exigido tanto do meu tempo, nos últimos anos. Ganhei-o de presente do Gustavo. Atento às preocupações facilmente detectáveis em mim, meu filho mais novo sabia quanto a leitura da obra desse professor da Universidade Johns Hopkins poderia oferecer material para dissipa-las. Ou – e isso não teria passado pela imaginação do doador – agrava-las.
Desde as primeiras páginas, adotei o método rotineiro: o registro, a lápis, na margem do texto, de anotações, comentários e destaque a propósito das linhas, períodos, parágrafos e capítulos – lidos. Desta vez, uma só alteração: o que me pareceu resumo dos assuntos que seriam mostrados após o prefácio e a introdução. Está lá, na folha de rosto (p.1), a primeira nota com feição esquemática. Traz uma tentativa de perceber o cenário descrito nos dois textos mencionados linhas acima, para indicar a questão central: a disputa entre democracia iliberal e liberalismo sem democracia.
O autor levanta seus olhos para diversos países do mundo que vêm experimentando o assédio de algum desses dois tipos de sistema político, como a Turquia, a Polônia, a Índia, a Áustria, a Hungria, a Grécia. Antes de ingressar na que chama Parte 1, o livro descreve os acontecimentos que têm abalado os países, aproximados de um dos dois tipos por ele descritos. No primeiro desses tipos, o que ele mesmo diz ser uma espécie de democracia sem direitos (dentre eles a liberdade); o segundo, liberdade sem direitos assegurados a todos os cidadãos.
Segue-se a Parte 1, em que é a abordada a crise da democracia liberal. Três são os textos apresentados – Democracia sem direitos; Direitos sem democracia; e A democracia está se desconsolidando.
O título dos dois primeiros textos da Parte 1 já deixa margem a objeções que reputo interessantes e cruciais. A principal delas, a admissão de que há democracia sem direitos. Ora, a ideia da generalização de proteção jurídica aos cidadãos e o aprofundamento de relações entre iguais é da essência do que se chama democracia. O segundo texto remete a contradição a meu juízo igualmente refutável, a não ser que admitamos a legitimidade de regimes unipessoais ou autocráticos ou plutocráticos.
O material colhido pelo autor para ilustrar os riscos de as nações rumarem em direção ao que ele chama democracia sem direitos, vem da Alemanha, dos Estados Unidos, da Rússia, da Itália, da Espanha, da Suíça, da Dinamarca, da Finlândia, do Canadá, da Suécia. O quadro em que ele cruza as variáveis antidemocracia e liberalismo leva-o a classificar as nações em democracia liberal (Canadá é o exemplo dado), se é alto o grau de liberalismo e alto o de democracia; democracia iliberal, de que o exemplo é a Polônia (com alto grau de democracia e baixo de liberalismo); liberalismo antidemocrático (União Europeia, com alto grau de liberalismo e baixo grau de democracia) e ditadura (Rússia, com baixo grau de ambas).
Já as democracias sem direitos combinam as mesmas variáveis, sendo que as mesmas nações são classificadas nas mesmas posições acima.
Mounk observa cada um dos países, destacando alguns pontos comuns, no que diz respeito à conduta dos governantes e à reação dos demais agentes sociais. A rejeição aos imigrantes, a discriminação racial, o recrudescimento do populismo, as restrições à globalização, a ofensa às instituições tradicionais, a perda de representatividade dos parlamentos combinam-se e instalam a crise. Neste particular, os percalços por que passa o Brasil, com relação ao Supremo Tribunal Federal parecem guardar semelhança com problemas enfrentados por outros países.
É nesse caldo de cultura que o autor vê a emergência de líderes populistas e postas em xeque quase todas as instituições que ele reputa fadadas a assegurar a estabilidade social e econômica.
Os chamados Pais Fundadores, cujos dedos estão presentes na Constituição dos Estados Unidos da América do Norte surgem aos olhos do professor Yascha como profetas mal-ouvidos pelos seus pósteros.
A Parte 2 do livro, intitulada Origens, trata das mídias sociais, da estagnação econômica e da identidade. No primeiro texto, os impactos da comunicação a distância, sobretudo consequentes à criação de redes virtuais, são esmiuçados. Então, o autor faz interessante consideração a respeito do que chama tecno-otimistas e tecno-pessimistas. Nem seria preciso esclarecer: os que apostaram todas as suas fichas no mundo maravilhoso que a informática implantaria na Terra e os outros, para os quais só desgraça viria como resultado do avanço tecnológico. Tal debate não tem sido levado a sério entre nós, a despeito de sua importância em quase todos os aspectos da vida social, política em especial.
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* O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. Tradução de Arantes Leite, Débora Landsberg, São Paulo, Companhia das Letras, 2019. A segunda parte será postada dia 28 de janeiro de 2021.
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