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Foto do escritorProfessor Seráfico

Alvíssaras à Academia!

Alvíssar

O discurso oficial, seja de autoridades públicas, seja de lideranças empresariais, seja

ainda de políticos no exercício de mandato parlamentar, recorre a temas e afirmativas

que já se constituem lugares-comuns. A impressão que se tem é a de que os oradores

buscam legitimar suas manifestações orais, aproximando o discurso daquilo que julgam

impactar favoravelmente o espírito das platéias a que se dirigem.

Listemos alguns desses lugares-comuns, cada dia mais, tornados vazios de conteúdo.

São falácias proclamadas em todo lugar, na tentativa de mostrar convicções que estão

longe da verdade. Ei-las, a título de exemplo tão-somente.

1. Vivemos na sociedade do conhecimento;

2. Esforços adicionais na educação, na pesquisa científica e tecnológica tenderão a

aumentar nossa produção científica;

3. O Brasil é, hoje, o 12º país que mais produz trabalhos científicos no Mundo;

4. O atraso em que a Amazônia se encontra, relativamente a outras regiões do País,

torna urgente a formação de doutores que se fixem na região;

5. É preciso combater a biopirataria, que compromete o desenvolvimento da região

e, em conseqüência, o País;

6. Outros países investem maciçamente em ciência e tecnologia, sendo expressiva

a contribuição das empresas.

Outros lugares-comuns poderiam ser alinhados, mas os que acima se indicam bastam

para revelar o descompasso entre o discurso e a ação dos mais diversos agentes, estejam

vinculados ao poder público, sejam influentes no empresariado.

Analisemo-los, um a um, confrontando-os com as decisões e as práticas públicas e

particulares vigentes no País.

Talvez o discurso do conhecimento seja o mais hipócrita que se pode constatar. No setor

público, é regra desconsiderar os acadêmicos, estejam eles nas salas de aula ou nos

laboratórios. O tratamento que sucessivos governos têm dispensado ao conjunto desses

abnegados desmente qualquer cenho cerrado ou proclamação espetaculosa. Até mesmo

de vagabundos um de seus mais ilustres e festejados colegas já os chamou.

Não é muito diferente, quando se trata do mundo empresarial. Nele, a verificação de que

maior qualificação há-de levar a melhor remuneração produz a troca do doutor pelo

recém-formado, quando não pelo estagiário. Neste caso, é comum a legislação

correspondente servir apenas para mascarar a relação de emprego que deveria

estabelecer-se.

Os investimentos em educação, geralmente utilizados para proclamar virtudes

governamentais, quase nunca não avaliados pelos resultados. Contentam-se as

autoridades em divulgar números (escolas construídas ou reformadas, cursos criados ou

implantados, livros e carteiras adquiridos, bolsas concedidas, etc.), sem qualquer

preocupação com as varáveis de ordem qualitativa (percentual de redução do

analfabetismo, da oferta de vagas, de empregos gerados para absorver os novos

profissionais etc.), as que fazem realmente a diferença.

Desconhecem-se, no setor privado, facilidades institucionalizadas e sistematizadas de

estímulo à freqüência em cursos de especialização, mestrado e doutorado. Muitas vezes,

a existência de tais mecanismos destina-se a aproveitar liberalidades fiscais que acabam

por beneficiar exclusivamente as empresas, não a ciência e a tecnologia. Isso apenas

reforça a conduta apontada anteriormente.

Mesmo diante de toda essa deliberada intenção de dificultar a pesquisa científica e

tecnológica, o Brasil avançou significativamente na produção de trabalhos acadêmicos.

Por isso, chegou à posição que hoje ocupa no cenário internacional. Se os cientistas

brasileiros só esporádica e assistematicamente encontram no Estado e nas empresas o

apoio necessário aos seus trabalhos, mas ainda assim conseguem levar o País ao nada

desprezível 12º lugar, deve-se muito mais ao seu esforço individual e a insuspeitada

dedicação à obra que se propuseram construir. Eis mais uma das muitas razões que

justificam tratamento absolutamente diferente do que lhes vem sendo dado.

Particularmente em relação à Amazônia, encontram-se condições agravantes. Além de

sujeita às difíceis condições enfrentadas pelas demais regiões, a comunidade científica

deste imenso pedaço do Brasil cansa de ouvir loas às perspectivas que a floresta e outros

de seus recursos naturais oferecem. Diz-se à boca pequena e reiteradamente que aqui

podem ser encontrados remédios para quase todo tipo de mal; que a floresta esconde

materiais insuspeitos, aplicáveis em vários ramos da indústria; que a indústria de

cosméticos e de alimentos muito se beneficiará, caso se destinem recursos para a

pesquisa dos produtos florestais da Amazônia. Não obstante, é ínfimo o que gasta o

poder público objetivando esses anunciados resultados, tanto quanto é incipiente e

inexpressiva a contribuição do setor privado. A floresta continua sendo não mais que

um desafio, carente de quem queira de fato superá-lo.

Todos os recursos alocados pelos órgãos públicos, federais, regionais e locais, é apenas

um grão de areia na imensa praia de dificuldades, de promessas também.

A quantidade de mestres e doutores fixados na região é infinitamente menor que a que

se localizou em outras regiões do País. O anúncio da abertura de novas fontes e

programas de financiamento de formação desses profissionais esbarra em medidas

governamentais nocivas a qualquer propósito meritório. Não se diga, aqui, que apenas o

Executivo conspira contra a ciência. Na verdade, dada sua freqüente interferência nos

demais poderes, tal invasão de competência não se faz a favor da pesquisa e da ciência,

quando outro poder toma a nefasta iniciativa.

Vejam-se, por exemplo, as restrições impostas às entidades de apoio às instituições de

ensino superior (IES) de todo o País. A partir de abril de 2010, é certo que muitas

pesquisas em andamento serão suspensas, pela impossibilidade de transferência de

verbas públicas para as fundações de apoio à pesquisa. Depois daquele mês, então, o

quadro se tornará ainda mais grave.

Para evitar a ação das fundações, algumas vítimas de absurda generalização, seria

necessário que as próprias IES estivessem suficientemente habilitadas a receber e gerir

os recursos transferidos pelo poder público. Não é o que ocorre, sabendo-se da carência

na composição dos quadros docentes e administrativos das IES, nos equipamentos

laboratoriais e nas desatualizadas bibliotecas universitárias.

À guisa de impedir o desvio de recursos transferidos às fundações de apoio, o Tribunal

de Contas da União e a Controladoria Geral da União deram tratamento isonômico a

entidades abissalmente diferentes nas práticas administrativas. Esses órgãos e outros

mais incumbidos de controlar os gastos públicos, justamente preocupados com desvios

flagrantes em algumas daquelas entidades, fizeram tabula rasa e passaram a,

injustamente, considerar faltosas todas as demais. Enquanto isso, bilhões escorrem por

outros ralos, igualmente sujeitos à ação dos órgãos controladores, que parecem não ter

tempo para vigiá-los. Em resumo: tais órgãos entregam-se a caçar bruxas em céus

muitas vezes transparentes, facilitando a ação livre e ágil dos ratos que se combatem nos

esgotos do País. Os episódios que envolvem o assim chamado banqueiro Daniel Dantas

são mais eloqüentes que milhões de palavras.

Freqüentemente, Japão, Coréia. Taiwan, Alemanha e uns poucos mais países são

apontados como exemplos de investimentos privados em ciência e tecnologia. Graças a

isso – afirma-se – esses países acumulam expressiva quantidade de patentes, e invejável

avanço científico e tecnológico. Por isso, quase todos os países do Mundo têm sido

invadidos por produtos originários de lá, prejudicando-se em muitos casos o surgimento

de iniciativas empresariais nas nações importadoras. Tanto quanto se sabe, a competição

com aquelas nações não consegue ultrapassar a queixa reiterada e o apelo sempre por

mais verbas públicas para a pesquisa científica e tecnológica. O Estado, esse ser

invisível a cada dia menos prestigiado pelas próprias lideranças empresariais, surge

então como o anjo vingador e salvador. Seus cofres devem abrir-se mais uma vez, se

pretendemos ver melhoradas as condições de operação do processo de acumulação

capitalista em vigor.

Freqüentemente condenado, o que se chama biopirataria tem justificado inflamados

discursos e promessas recorrentes, sem que se testemunhem providências consistentes e

sérias para vencer mais esse obstáculo. Não se espere que da ação policial ou fiscal

resultará qualquer benefício para a região, nem para a ciência. A única resposta

adequada à biopirataria coincide com a aplicação de substanciais recursos na pesquisa

científica, o que significa dizer na formação de pesquisadores, modernização de

laboratórios e bibliotecas, disposição dos recursos mais modernos e sofisticados já

incorporados à academia de outros países.

Se a Amazônia é suscetível desse mal, que se dê a ela o que Ruy Barbosa considerava o

cerne da justiça: tratamento desigual para casos desiguais. Só assim será possível

cumprir o mandamento constitucional que discrimina a busca da redução das

desigualdades regionais e pessoais dentre os objetivos da República.

Como dito lá em cima, esses são apenas alguns dos ingredientes da receita que nos

impede de cumprir o destino histórico que nos está reservado.

Sem a contribuição dos seres humanos, sejam governantes ou governados, cientistas ou

estudantes, políticos ou empresários, simplesmente perderemos as oportunidades que se

põem diante de nós. Permanecer na situação em que estamos, ou trocá-la por outra ainda

pior, é algo que não foge às nossas próprias decisões – não individuais, setorizadas, mas

como algo coletivo, como sociedade organizada.

Refletir sobre esses e outros pontos de igual relevância é obrigação a que não deve fugir

todo brasileiro ciente de seus deveres como cidadão e comprometido com as gerações

que cada um de nós ajudou a vir ao mundo. Tal reflexão encontrará na Academia de

Ciências do Pará amplo espaço, aberto ao debate e intimorato no enfrentamento das

questões que lhe dizem respeito.

É o que espero.

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