1. Subida a escada
A imagem permanece na minha memória. O homem vestia apenas a calça comprida do pijama. O tórax parcialmente desnudo facilitava a cuidadosa operação que o entretinha. Uma das mãos equilibrava caprichosamente um dos milhares de volumes abrigados nas muitas estantes que forravam as paredes da sala. Como igualmente faziam com as paredes de outros cômodos da construção tipicamente portuguesa. A outra mão passava com carinho indescritível pequeno pano umedecido não se sabe em que milagrosa poção[1], na lombada e no miolo aparente de cada volume.
Não precisara ir além do patamar em que a pequena escada findava, para ver a síntese viva da reunião diária de homens e mulheres que pensavam e, através seja de que arte for, faziam seus pensamentos circular entre os contemporâneos. Entre os pósteros, também.
A cena parecia magnetizar-me. Cumprimentei o dono da casa, mas não repeti o cumprimento costumeiro. O impacto daquela cena foi muito além da admiração já consolidada.
Testemunha da reunião noturna do grupo de intelectuais, só me faltava assistir àquele espetáculo solitário, síntese do verdadeiro amor ao livro e à leitura. Muito tempo depois, dei-me conta do efeito do ocasional encontro sobre minhas relações com a obra impressa. Reforçava-se, então, o gosto pela leitura e o prazer do contato com o livro, aprendidos com meu próprio pai. O estímulo que trazia de casa multiplicava-se ali – e sequer eu podia, àquela altura da vida, imaginar que fosse assim...
Amigo do terceiro da numerosa prole do dono da casa, frequentava-a quase diariamente. Também a frequentavam, por motivos diferentes dos meus, poetas, escritores, pintores, bailarinos, etnólogos, antropólogos, filósofos, historiadores e outros integrantes da intelectualidade paraense. E da que aportava na cidade.
Era em torno de Inocêncio, o pai, que se travavam as mais enriquecedoras discussões. O anfitrião era-o, mas era sobretudo o catalisador e animador do que ele mesmo batizou de "serõezinhos". Na verdade, aquelas reuniões me pareciam réplica do que nos ensinara o professor Francisco Paulo do Nascimento Mendes, ele também frequentador assíduo da então chamada varanda de Celina e Machado Coelho, os pais do meu amigo.
Admirador daquele homem simples e bem-humorado, só décadas depois daqueles dias de despreocupada adolescência soube-o fundador do Instituto de Antropologia e Etnologia do Pará - FAEP[2], e ex-diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Se, no passado, reunira motivos para admirar Machado Coelho, agora vejo ratificado meu convencimento a propósito das pessoas e as posições profissionais ocupadas. Estes é que engrandecem aquelas, não o contrário.
O fundador do IAEP e ex-diretor do MPEG foi, também, Chefe de Gabinete da SPVEA e do Tribunal Regional do Trabalho, dentre outros cargos. Nestes, portou-se como se portam os dignos. Não amealhou fortuna, como não se fez áulico. O destaque maior, que a humildade do servidor público não conseguiu obscurecer, quem o conferiu e tornou conhecido foi o amor dedicado aos livros e o que disso resultou.
2. A época
Estudante, como Inocêncio (o filho), do Colégio Estadual Paes de Carvalho, era certa minha presença na casa da família Machado Coelho, quase diariamente. Se a presença se registrava à noite, lá podia testemunhar a reunião de pessoas que não apenas estimávamos, mas tínhamos como das mais brilhantes e pensantes cabeças do Pará.
Se Francisco Paulo do Nascimento Mendes, o tio Mendes para os mais jovens anfitriões, era credor de nossa estima e admiração, também o eram Ruy Guilherme Paranatinga Barata, Benedito Nunes, Raimundo de Souza Moura e Mário Faustino. Outros havia, mas esses eram os que mais festejávamos. Sem falar nos frequentadores eventuais, como Rui Coutinho, Cléo Bernardo, Manuel Lobato, João Fernandes, Edgard Olintho Contente, Haroldo Maranhão, Jocelyn Brasil, Garibaldi Brasil, Nunes Pereira, Eidorfe Moreira, Josué Montelo, Osvaldo Orico, Gilberto Freyre, Adalcinda Camarão, de Campos Ribeiro, Edgar e Edyr Proença, Edgar Vianna, Frederico Barata, Paulo Plínio de Abreu, Waldemar Henrique, Líbero Luxardo, Zora Seljan, Darcy Ribeiro, Eduardo Galvão, Leônidas Monte, Walter Égler, Cléo Bernardo e Sílvio Braga, Max Martins, Simão Bitar, Maurício Coelho de Souza, Arthur César Ferreira Reis e Djalma Batista.
Muitos desses frequentadores iam diariamente à varanda; outros frequentavam-na menos. Muitos deles, morando em outras cidades ou Estados, ou mesmo no exterior, só iam lá quando em passagem pela capital paraense. Logo se vê que o ímã de Machado magnetizava não apenas os jovens iniciantes, como eu...
Quanto lamentávamos não ter as condições necessárias à participação naqueles saraus: a erudição, a cultura e a idade. Não éramos mais que adolescentes mal iniciados nos caminhos da literatura, da arte e de tudo o que se relacionava à cultura. Alguns dos que se reuniam em torno do velho Machado eram responsáveis pelo gosto que em nós se ia formando.
Hoje me dou conta de que nasceu ali, arrancando à distância a semente que prosperou, o Silogeu dos Novos. Foi assim que denominamos o grupo de ginasianos reunidos a cada semana, para declamar poesias, ler textos em prosa e comentar livros e filmes lidos e assistidos, ou obras de arte que certamente ainda não tínhamos a menor condição de criticar. Apreciar, talvez, um pouco apenas. Ou simplesmente comentá-las, ao sabor da ousadia própria dos jovens. Pelo menos os daquela época ...
Depois o Silogeu, de que Inocêncio, o filho; Pedro Cruz Galvão de Lima, a promessa de poeta que se concretizou; Marcelo Caminha Gomes, hoje físico respeitado, e Luís Flávio Figueiredo de Lima, médico precocemente falecido – participávamos, não tardou a ser substituído pelo Centro de Propagação Cultural. Aí, já se encontravam no grupo Renato Tapajós e Luís Fernando Castro, todos envolvidos com a primeira feira de livros realizada em Belém, na Praça da República. Sem atinarmos para essa circunstância, o lugar da feira se beneficiava dos bons ventos soprados da casa nº 158 da Avenida Assis de Vasconcelos, sede dos serõezinhos de Machado Coelho. Cerca de 100 metros distanciavam-nos daquele profícuo e simpático ambiente. Quem sabe não vinha dali nossa inspiração?!
O dono da casa, bibliófilo dos mais sofisticados que conheci (não fosse testemunha da cena acima descrita), poderia reivindicar para si a identidade com o próprio vocábulo - amigo dos livros. Mais que leitor, mais que cuidador de livros, Machado Coelho parecia absorver deles o oxigênio que o manteve entre nós até perto do centenário. E quão prolífica foi sua vida!
Quando se fala em bibliófilo, imediatamente é lembrado o nome do industrial José Mindlin. Talvez porque tenha vivido no Estado mais rico da Federação, o ex-proprietário da empresa Metal Leve tenha seu amor pelos livros festejado. Na Amazônia, porém, viveu um intelectual que obtinha, cuidava e divulgava obras literárias com resultados talvez mais expressivos que os alcançados por Mindlin. Era Inocêncio Machado Coelho.
Já não tivesse bastado gerar onze filhos, ele é o exemplo mais evidente de que a inteligência e a dedicação a uma causa – o livro e o saber, no caso dele – superam a instrução escolar. Se é que não fazem desta, ao contrário, mero ornamento – ou o cumprimento burocrático de uma prosaica obrigação legal.
A efervescência do período entre-guerras gerava o sentimento e a necessidade de buscar a identidade nacional, ao mesmo tempo em que a inserção na sociedade internacional, que parecia mostrar-se mais aberta. A produção dos escritores da época traz para o papel as angústias, os anseios e a percepção das artes como fator relevante na vida social. Nesse período, qualquer jornal diário que não destacasse espaço para o trato das coisas do espírito – seções de cinema, de literatura, de artes em geral – estaria em desvantagem diante dos que o faziam.
Buscava-se, então, a prosperidade econômica, sim; mas também era facilmente percebida a falta de sentido, quando tal busca se faz sozinha, voltando as costas para a cultura.
Em Belém do Pará, desfrutava-se do clima de relativa liberdade espalhado por todo o País, desde a queda da ditadura Vargas. Compreensível, portanto, que os intelectuais procurassem qualquer oportunidade para trocar ideias e alimentar os sonhos que os embalavam. Se bem que houvesse bom número de nostálgicos do período autoritário, a maioria desejava ver a prosperidade do Brasil e se entregava a discutir os aspectos que lhe pareciam exigentes de solução. Prosperidade, diga-se, sem abrir mão da altivez, da identidade – da própria História, enfim...
Tem muito a ver com a esperança assim cultivada a existência de lugares onde se reuniam os sonhadores, em um tempo ainda muito distante da prevalência dos bens materiais sobre os gozos espirituais. Se na varanda de Machado Coelho toda noite um grupo de pessoas das mais variadas profissões dedicava-se a discutir literatura, arte e, com menor entusiasmo, as coisas da política, o Central Café recebia parte delas, quando saía do casarão do velho Machado.
Ambos, o Central Café e a varanda da Praça da República eram palco de acesas e enriquecedoras discussões, retratando uma época que valorizava o saber e a cultura sem que os protagonistas do processo se dessem conta disso, mesmo se o encarassem com toda naturalidade.
Daquele café, em que o poeta João de Jesus Paes Loureiro ambientou seu primeiro romance[3], muitos de nós fazíamos elo da viagem casa 158 da Avenida Assis de Vasconcelos-Bar do Parque. A fome de conversa temperava-se com uns e outros cafezinhos, raramente uma cerveja.
Desse tempo é ilustrativo o testemunho do Jornalista Lúcio Flávio Pinto, ao considerar que “Machado Coelho escrevia como um clássico, mas sem pose”.[4] O autor do Jornal Pessoal acentua um traço importante da personalidade do catalisador de cultura, o gosto pela conversa, mais que a preocupação em registrar em livros seus pensamentos e suas percepções da arte e da vida. Daí ter afirmado:
“Mas (Machado Coelho) escreveu pouco e publicou quase nada em vida, na forma mais perene (ainda), a do livro. O que ele queria era ler, conversar com os amigos e circular pela cidade, de “flosô”, como se dizia”.
Nesse ponto, o combativo jornalista santareno ratifica a impressão dos que conheceram
Machado Coelho, tão bem retratado por Célia Bassalo, sua filha. É dela o depoimento:
“Foi com essa visão de que biblioteca é um universo à medida do homem, que o escritor, jornalista, crítico literário e causeur Machado Coelho leu e construiu ao longo dos anos, com muito sacrifício, a sua selecionada biblioteca humanística, pois o conteúdo de seu acervo é o que forma o espírito humano pela cultura literária de modo geral”.[5]
Sua trajetória de homem público iniciou-se em 1937, quando foi nomeado Arquivista da Biblioteca e Arquivo Público do Estado do Pará. Certamente aí terá sido dada a melhor oportunidade que um amante dos livros há de ter, para explorar todo o seu gosto e sua dedicação às coisas do espírito. A aproximação do amante com o objeto de seu amor.
3. O homem de todas as letras[6]
Embora minha frequência assídua à casa dos Inocêncio, pai e filho, tenha durado de 1957 a 1962, a presença de Machado Coelho no panorama intelectual do Estado do Pará se fazia sentir desde muito antes. E não se fez gratuitamente, porque os postos do serviço público por ele ocupados lhe permitiram por em prática muitas das ideias que sua mente perspicaz e comprometida com a região formulou. Se isso era sua missão oficializada, ele mesmo engendrou outra, a de animador de ricos saraus – seus serõezinhos de toda noite.
Nascido em 1909 e morto próximo do centenário, a ele foi dado experimentar as vicissitudes de um mundo açoitado pela Primeira Guerra Mundial e as consequências da Semana de Arte Moderna, ainda criança; a Revolução de Trinta e as profundas alterações que dela advieram para a sociedade brasileira, mal saíra da adolescência; a Segunda Guerra e as conflagrações regionais e nacionais decorrentes, dentre outras causas, da reunião de Yalta; a primeira redemocratização do Brasil; o golpe militar de 1964 e parte de suas consequências, já adulto.
Vida assim tão longa, só aos pobres de espírito não proporciona o enriquecimento cultural e o acúmulo de sabedoria, incapazes de serem sorvidos nas taças acadêmicas. Daí ter Machado Coelho captado os sinais de seu tempo e, por via dessa contemplação produtiva, deixado o registro de suas observações e seus juízos.
Mas não é da progressão funcional de Machado que tratarei, neste texto. Interessa, sim, pontuar sua produção intelectual, revelada em numerosos trabalhos publicados em colunas de jornal e na forma de livro.
Outras funções públicas propiciaram a Machado a oportunidade de ampliar o ângulo de que apreciava os fatos. Não terá sido em vão sua passagem pela direção do Museu Paraense Emílio Goeldi, tanto que logrou criar o Boletim em que o resultado do labor investigativo de seus colegas cientistas foi posto no mundo.
Precisa dizer pouco, a respeito do período em que esteve na Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, quando Arthur César Ferreira Reis ocupava o posto mais alto. Primeiro como chefe de Gabinete, depois como membro da Comissão de Planejamento, Machado viu mais tarde sua dedicação e proficiência reconhecidas, com a atribuição de seu nome à biblioteca da atual Superintendência da Amazônia- SUDAM. Nada mais apropriado para aquele espírito refinado, que essa homenagem.
Menor não foi a participação e a contribuição oferecida pelo catalisador de talentos e inteligências, nos outros cargos públicos por que passou. Igualmente, sua presença no Instituto Histórico e Geográfico do Pará – IHGP e na Academia Paraense de Letras engrandeceu ambas as instituições.
Importante, pois, mencionar o excelente trabalho de Machado Coelho, na revista Novidade (coluna Belém artística), de cuja criação participou, junto com Haroldo Maranhão e outros intelectuais. Pelo menos de 1940 a 1942, seus comentários na coluna sobre livros apresentaram crítica literária interessante, porque vazada em amplo conhecimento do ofício. Também neles pode-se testemunhar a cultura multimorfa do autor além de apreciável erudição. Não a erudição ornamental, ostentatória, mas o conhecimento sólido, transposto para o papel como enriquecimento do texto e elucidação do leitor.
Essas qualidades também estão marcadas na coluna Crítica literária, que Machado manteve em A Província do Pará, um jornal diário de Belém.
Em ambas, encontra-se, reiteradamente, exemplo evidente de uma diferença que considero fundamental para a compreensão de uma – a erudição – e outra – a cultura. É detentor da primeira quem faz da própria memória um baú onde se deposita toda sorte de relíquias e bugigangas. É culto quem, retirando uma peça de dentro do baú, transforma-a, seja pelo acréscimo de algum elemento, seja pela opinião, seja pelo julgamento. Talvez valha dizer que um é o descritor, sendo escritor o outro.
Ao simplesmente erudito geralmente ocorre de guardar para si os tesouros ou utilizá-los como objeto de ostentação, de humilhação dos que não os têm. O culto, transformando a peça entesourada, distribui os benefícios dessa operação entre os que lhe dão ouvidos. Os que não fazem ouvidos de mercador, para aproveitar uma das mais expressivas críticas do próprio Machado Coelho.[7]
Produzindo quatro colunas mensais para o diário paraense, com o título Vida literária, o crítico frequentemente teceu considerações em cada uma delas sobre mais de uma obra. Quanto tempo dedicava à leitura! Tal circunstância é atestada pela abordagem criteriosa e profunda dos temas, aí revelando a enorme capacidade de apreensão da obra e os dotes que só um bom escritor apresenta. A ironia, por exemplo, marca os textos editados pela revista, de março de 1940 a maio de 1942.
Há alguns momentos, na prosa de Machado, que nos lembram José Saramago. Por isso, ao lermos os textos publicados tanto na Novidade, quanto em A Província do Pará, é inevitável a emersão, do mais fundo de nossa memória, do livro As intermitências da morte[8], do grande escritor português, justamente premiado com o Nobel de Literatura.
Passam pelo crivo do crítico autores da literatura regional, nacional e internacional, podendo citar-se dentre eles: Osvaldo Orico, Arthur César Ferreira Reis, Bruno de Menezes, Augusto Meira; Gustavo Barroso, Genolino Amado, Gilberto Amado, Carolina Nabuco, Arnon de Melo, Francisco Campos, Lúcio Cardoso, Jorge de Lima, Viana Moog, Herman Lima; Jules Romains, De Gaulle, Jane Austen, Aldous Huxley, G.H. Wells, Jean Babelon.
Também o diário antes dirigido por Romeu Mariz[9] publicou coluna intitulada Belém Artística, sob a responsabilidade de Machado Coelho. Pelo menos dez textos datados de 1976 (fevereiro a junho) ampliam e reforçam a imagem do autor como um amante das artes e profundo conhecedor do assunto.
No jornal em longo período dirigido por outro dos fundadores[10] do Instituto de Antropologia e Etnologia do Pará – IAEP, os comentários referem-se a peças de antiquário, suspeito que muitas delas hoje abrigadas no Museu de Arte Sacra do Pará.
O trabalho que precocemente me chamou a atenção é o Minhas canções de Verlaine. Nele, Machado Coelho dá mostras de muito mais que bom tradutor. Revela-se nas páginas do opúsculo editado pela Gráfica Falângola Editora, em 1951, inspiradíssimo poeta.
Se comparadas as traduções feitas por Alphonsus de Guimarães e Machado Coelho, torna-se mais evidente ainda a qualidade do trabalho do catalisador da Praça da República. Vale a pena compará-los, a partir da primeira estrofe do poema que serviu de senha ao desembarque das tropas aliadas na Normandia.
Em francês:
Les sanglots longs
Des violons
De l’automne
Blessent mon coeur
D’une langueur
Monotone
A tradução de Alphonsus de Guimarães:
Os soluços graves
Dos violinos suaves
Do outono
Ferem a minh’alma
Num langor de calma
E sonho.
Agora, a tradução de Machado Coelho:
Solos de langue
Violino exangue
Ferem no outono
Meu coração
De lassidão
E de abandono.
Mesmo para ignorantes de técnicas e de artes poéticas fica fácil perceber quanto a tradução do intelectual paraense é prenhe de poesia, mais que de tradução. Talvez aí, o medo de tornar-se traditore[11] tenha levado ao cuidado com que Machado Coelho verteu para o Português a bela estrofe inserida no livro Poèmes Saturniens. Também se pode ver quanto o tradutor se vale de seus próprios dotes de poeta.
O opúsculo de Machado reúne poemas publicados em vários livros do companheiro de Rimbaud. Além do Chanson d’automne (Poèmes saturniens), a obra traz En sourdine (Les fêtes galantes), La lune blanche, Le foyer, la lueur..., (La bonne chanson), Ariette oubliée, Green (Romances sans paroles), Les mains, Silence, De profundis (Sagesse), e Pour E...(Poèmes divers).
Minha admiração pelo fundador e então presidente da Aliança Francesa no Pará terá sido a causa maior de, cedo, ter decidido inscrever-me em um dos cursos lá ministrados.
A propósito dos vínculos de Machado Coelho com a França, que para ele certamente seria mais o país de Verlaine e Rimbaud que de Charles de Gaulle e Nicolas Sarkozy, destaque-se a perfeição com que falava a língua francesa. Falava-a como se fosse um nativo da velha Gália.
Episódio ocorrido após a cerimônia de outorga a ele do título de cavaleiro da Ordem Nacional da Legião de Honra da França ilustra-o magnificamente. Investido da comenda, ao discurso de agradecimento do agraciado sucedeu a quebra de protocolo, pelo Embaixador da França no Brasil. Pedindo a palavra, o diplomata afirmou nunca ter ouvido um estrangeiro falar tão bem a língua de seu país.[12]
Reconhecia-se, ali, o que o novo comendador francês reivindicava para si: aquela era sua segunda língua. Diríamos, se o português lhe servia de língua-mãe, porque de fato o era, o francês cumpria as funções de língua-tia, ou língua-madrinha.
Há textos esparsos, publicados em outros veículos de comunicação. É o caso da Revista de Cultura do Pará, que traz interessante texto de Machado, traçando o perfil humano e literário de Manoel Lobato.[13]
Esse conviva diário do dono da casa nasceu em Humaitá, no Amazonas, e passou a maior parte de sua vida na capital paraense, onde se fez amigo do autor. A amizade, a admiração e a solidariedade de Machado produziram belíssimas páginas, sempre recheadas de importantes referências, como de costume nos seus textos.
Para ele, Manuel Lobato era um companheiro de viagem. Disse-o bem, pois viagens era o que experimentavam os seronistas nas conversas descontraídas e ricas da varanda. Além dos deslocamentos reais de Lobato, pelas diversas partes do mundo.
Em síntese, eis como o amigo e anfitrião do amazonense feito chefe de gabinete do governador do Pará e deputado estadual o via:
A literatura era seu fraco e era o seu forte. Anatoleamente, falava de si mesmo através dos livros, que foram sua paixão alucinada e alucinante.
Foi tamanha a inserção – digo-o melhor, assimilação – de Lobato ao clima intelectual e à vida do Pará, a ponto de Machado afirmar que, diferente de Heine, o desgraçado poeta alemão, (que) levou toda a amargura do mundo no esquife, no de Manuel Lobato foi muito do passado cultural de nossa terra.
A prosa solta, leve e precisa, marca nesse trabalho a erudição do autor e seu apurado senso de observação, seja do objeto de sua escrita, seja da produção literária que sustenta o texto. As referências, diretas ou apenas insinuadas ou incidentais, dizem da riqueza da linguagem e dos conhecimentos de que ela se nutre. Tudo, sem ostentação ou empáfia. Tudo muito natural, como se o papel, tornado livro ou não, fosse território em que o autor pisava seguro, confiante, sem temer escorregões. Estes, é certo, se não aconteceram, algumas vezes foram apontados. Apontados, era quase certo renderem excelente material para o desfrute e a ilustração dos leitores. E, também, saborosas disputas literárias.
Exemplo das discussões que Machado não evitava, antes parecia estimular e divertir-se com elas, foi a controvérsia mantida com José Ribamar Moura, a propósito da doença do outro Machado, o de Assis.
Epilético, o bruxo do Cosme Velho teve atribuídos ao mal alguns de seus pecados literários – chamemo-los assim. Isso bastou para Moura, com ironia, tecer comentários desairosos a trabalho de 1939 do outro, o Machado da Praça da República.[14]
Percorrendo críticos que se ocuparam do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas, Coelho marca sua posição:
Machado de Assis na literatura brasileira ficará, pois,
exemplo único: todos o leem, poucos o entendem, nin-
guém o imita...
O remate é dado também com ironia, citando D. Francisco Manuel de Melo:
Da infelicidade da composição,
erros da escritura e outras
imperfeições da estampa, não
há de dizer-vos: vós os vedes,
vós os castigais.
Foi o que bastou, para Moura desancar (vejam, só!) a erudição com que o criticado enriqueceu o trabalho sobre Machado de Assis, à moda de tantos outros por ele mesmo – Machado Coelho – elaborados. Eis como Ribamar Moura faz descer a maré de sua acidez crítica:
É que para mim o verdadeiro crítico não é tanto erudição, como
sobretudo intuição. Enquanto falou, no crítico, a sua intuição, de Machado de Assis, muito bem. Mas depois que veio com a sua erudição, desnorteou-se.
A resposta não se fez esperar. Como esperada a ironia cercada de toda sutileza, tão ao gosto do autor. Ele disse, já no pórtico da contradita:
Quero começar este artigo rendendo graças a Deus por me haver
conservado a vida e a vista para esperar e ler a apreciação de Ri-
bamar de Moura a propósito do meu ensaio Machado de Assis[15].
A ironia fina adiante, mas bastante próxima das palavras iniciais, cedeu lugar à contundente afirmação:
Ora, aplicando-se ao caso o princípio matemático da eliminação
dos parêntesis, resta na crítica de Ribamar Moura a segunda parte, a que ele quer que fique, a de minha ignorância científica.
O mote da divergência centrava-se na influência da epilepsia na produção literária do autor de Memorial de Ayres. Como ele mesmo esclarece no que chamou de tréplica,
... o que eu disse de Machado de Assis ou seja de sua arte, em relação a sua moléstia:
1º Sua arte é uma expressão de sua moléstia. Esta e aquela se fundem e confundem como causa e efeito de um mesmo fenômeno.
2º As qualidades e os defeitos de Machado de Assis são a emanação de sua sensibilidade mórbida, o influxo de sua constituição fisiológica.
3º O estilo de Machado de Assis é “uma exigência de sua fisiologia”, como a Renan de Gourmont pareceu o de Jules Laforgue.
Os dois parágrafos finais da tréplica fogem mais uma vez à fina ironia característica de Machado Coelho, mesmo bem dosadas de fino e ácido humor. Vejamo-los:
Concluindo meu trabalho, se tenho alguma coisa a lamentar é que minha instrução auto-didata não corresponde à cultura de universitário de Ribamar de Moura.
Valha-me, porém, o consolo de que os gatos com que caço são tão espertos como os cães de meu amigo...
Pode-se, logo, estabelecer substancial diferença entre o clima intelectual daquele então, comparativamente ao destes tempos de mercado globalizado. Também vale destacar que, mesmo sem título universitário, Machado Coelho não era menos que festejado, respeitado e admirado pelos muitos doutores de canudo e beca que frequentavam – ou não – os serõezinhos da avenida Assis de Vasconcelos, 158..
Desfilam nas poucas páginas de Manuel Lobato, o escritor e o homem[16] Tristão de Ataíde, Plutarco, Shakespeare, Camões, Garett, Heine, Wagner, Goethe, Afonso Arinos, Anatole France, Dante, Cornélio Agripa, Renan, Spinoza, José Veríssimo, Felisberto de Carvalho, Hilário de Gouveia, Abílio César Borges, Raul Pompéia, Miguel Ângelo, Bertino de Miranda Lobato, Amadeu Amaral, Stechetti, Domício da Gama, Ribeiro Bittencourt, Dionísio Bentes, Francisco Prisco, Alcides Santos, Carlos Nascimento, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Pestalozzi, Santo Agostinho, Napoleão, Amado Nervo, Rembrandt, Oscar Wilde, Frank Harris, Browning, Fiquemos nesses.
Da relação constam nomes de pessoas dedicadas às letras, mas também à política e à história, como a demonstrar o interesse e a atenção diversificados que Machado Coelho dedicava sobretudo à vida, em todas as suas nuances. Ele era o que, não faz muito tempo, nem o tempo já feito conseguiu apagar, se chamava humanista.
Nas sete laudas em que Machado Coelho reverencia a memória do amigo[17] pode-se percorrer muitas das páginas que entretinham o autor em sempre criativas leituras e na apreensão dos fatos de seu cotidiano.
4. Feitiço
Palestra proferida por Machado Coelho, em abril de 1963, O feitiço na literatura, na arte, na vida[18] não precisa de mais que 71 páginas, para reiterar o talento e a erudição do autor. Essas qualidades não eram ignoradas pelos que o ouviram expor, na sessão que o Instituto Brasileiro de Educação e Cultura- Secção do Pará promoveu, no auditório da Academia de Letras do Pará, no dia 27 daquele mês. Dentre os que o conheciam, o ex-reitor da Universidade Federal do Pará, professor José da Silveira Neto e o ex-delegado do Ministério da Saúde no Estado, Eleyson Cardoso. A informação está na folha de apresentação do volume, confeccionado em 2ª edição, eis que há outra, datada de 46 anos antes. A menção de agora justifica-se porque àqueles dois ouvintes deve-se o estímulo que pôs em letra de forma e multiplicou em papel a rica palestra. Isso vai dito nas páginas iniciais do livro, pelo autor.
O formato (13cm X 19cm), se materialmente pode ser chamado pequeno, encerra conteúdo soberbo. Tanto pela facilidade com que o fundador do Instituto de Antropologia e Etnologia do Pará – IAEP passeia pelas intrincadas vias do tema, quanto pela elegância do texto e a adequada dose de bom-humor e ironia ali contidos.
Na primeira parte, a que cabe à literatura, não há – como não o há nas demais – uma só citação desprovida de sentido ou feita com intenção cabotina. É tudo pertinente, ao mesmo tempo em que esclarecedor. Nem se encontra uma só palavra desnecessária, tanto o rigor com que Machado Coelho redigia seus textos.
Por isso, a leitura coloca-nos diante de um sábio, porque só eles dispensam gorduras na escrita, dizendo o que pensam e têm a dizer com a maior simplicidade. Observem, leitores, a precisão destas palavras:
Assim já se disse com espírito e fundamento que a superstição é para a religião o que a astrologia é para a astronomia: a filha louca da mulher sensata.
Nada mais se precisa, para entender todo o significado da expressão, a revelar muito mais do que distraidamente pudera algum leitor imaginar. Ciência e religião, aparentemente antípodas, têm lá, ambas, suas próprias superstições. Em ambas, as virtudes não impedem o tresmalho do rebento.
Para indicar que todos os tempos têm seus próprios diabos, Machado Coelho percorre a História e os aponta. A maçonaria, os fantasmas, as feiticeiras da Idade Média, o trovão – tudo isso revela a necessidade (ou seria vocação?) humana para o sobrenatural. Vemo-lo, igualmente, na literatura brasileira e amazônica, tão cheia de figuras como o curupira, a matinta-perera, o boitatá, o mapinguari, mesmo o tamba-tajá e as uyaras.
O requinte está na referência a escritores da Amazônia (que) não são feiticeiros, mas enfeitiçados. Cita-os[19], para enriquecer o trabalho e – aqui digo-o eu, que conheci e convivi (muito pouco, agora o percebo e confesso) com Machado Coelho. Nenhuma intenção de mostrar sabedoria ou erudição; apenas a transposição do alimento espiritual bem colhido e mais bem utilizado para páginas que alimentarão muitos outros.
Nesse ensaio resultante da palestra, o autor coloca verve, bom-humor e ironia, como soe acontecer com as inteligências superiores.
Quando procura situar o feitiço na vida, Machado trata do significado da figa, a mão fechada com o polegar aparente, espremido entre o indicador e o dedo médio. Os sortilégios alcançados pelo uso desse amuleto, eis como são descritos:
Parece até que a figa, a mão, associada a um cacho de cabelo, como se vê nas pulseiras, redobra a sua força estranha, misteriosa, secreta. É interessante assinalar o poder oculto e terrível do pelo, dos pelos humanos. Não entro, é óbvio, em detalhes, limitando-me àqueles que a linguagem decente permite mencionar sem ruborizar ninguém.
Muito mais se poderia dizer, acerca do ensaio editado pela Paka-Tatu. Mas ainda há muitas letras a por neste texto. Vale, portanto, mencionar agora o parágrafo que encerra a obra:
Ó feitiço! Foi (sic) tuas artes também que, à noite de hoje, este pobre auditório, sob a aparência e na ilusão de ouvir uma palestra, mas na realidade castigado por inimigos ocultos, acaba de sofrer um duplo suplício: o suplício da coisa dita e o suplício da coisa feita...
5. Assim na terra como no céu
Desde que o livro (Sapos e estrelas) chega às mãos, pensamos em encontrar resposta para a pergunta: o que justifica o título? Nas primeiras páginas, o professor Joaquim-Francisco Mártires Coelho (ele também obra do mesmo autor) esclarece:
Espirituoso e sobejamente descritivo, o título desde logo espelhava a heterogeneidade temática da secção, que aparecia às terças-feiras, dividia-se quase sempre em duas ou três partes, e abordava entre o céu e a terra assuntos atuais ou intemporais os mais diversos: política, religião, artes plásticas, folclore, pontos de gramática ou de filologia, anedotas da família e da terra, e ainda, evocadas de vez em quando em suas figuras e momentos exemplares, a literatura e a vida literária, duas grandes paixões do colunista.[20]
Como, certamente, todos os leitores, vi respondida pelo filho mais velho do autor, há quase cinquenta anos professor de literatura em Harvard, a dúvida e suspeita inaugural.
À leitura, vai-se confirmando o que Joaquim-Francisco anunciara. Sempre com o desembaraço e o cuidado estilístico que dispensam título especial a cada seção ou tópico nela inserido. Daí resulta a fluidez textual presente da primeira à última página.
É como se, na varanda tão bem-frequentada do casarão da família, Machado Coelho recebesse os leitores para a conversa despretensiosa, solta, bem-humorada, a que não faltavam sequer a provocação do “tio Mendes” e o chiste malicioso de algum dos outros convivas.
A temática, rigorosamente a vida e tudo o que nela se pode apreciar, para o bem e para o mal – vai-se desenrolando a cada seção e a cada tópico, ora com extrema e ostensiva ironia, ora com muita poesia, ora ainda com sereno e profundo juízo sobre os temas do dia. Em algumas passagens, percebe-se o gosto pela polêmica.
Aparentemente, apenas um homem de letras, como dito de Plínio, o Moço, Machado o era de todas as letras. Só a esse conceito poderemos ser levados, à constatação de que temas e assuntos mais afeitos aos homens de ciência estão contemplados nos comentários de Sapos e estrelas. É o caso, por exemplo, da seção que trata da cibernética, quando essa era não muito mais que especulação. Pois é na página 101 do livro que o autor afirma seu desejo de tratar do assunto. Lembrando aos leitores a talvez surpreendente guinada na área do conhecimento, ele diz que
Ontem, falava-lhe de uma nova filosofia, o Existencialismo de Jean Paul Sartre, e hoje quero falar-lhe de uma ciência nova, a Cibernética, de Norbert Wiener.
A partir daí, vemos clara e percuciente exposição da ciência que hoje se tornou assunto do cotidiano das academias e da própria indústria.
Esses e mais outros comentários sobre as ciências físicas e naturais aproximam Machado do biólogo Paulo Vanzolini, morto faz pouco.
Conhecido pela autoria de Ronda, prestigiada canção do repertório brasileiro, o ex-diretor do Instituto Butantã produziu também, dentre muitas outras peças do cancioneiro nacional, o Samba erudito. Neste, as referências a Picard, São Pedro, Santos Dumont, Olavo Bilac, Churchill e Pôncio Pilatos. Um - Machado Coelho – e outro – Paulo Vanzolini, dois humanistas remanescentes. Já não mais...
Quando mal se falava na Gerontologia (era julho de 1953), vamos ver nosso homem de todas as letras trazer ao público informação colhida em revista europeia.
Há, agora, uma ciência nova que para isso se ocupa do indivíduo a partir ... dos cinquenta anos: a Gerontologia.
Em seguida, a indicação das quatro importantes dependências do Centro de Estudos e Pesquisas Gerontológicas, instalado em Paris: Demografia e Estatística; Geriatria, Caráter Econômico; Sanitária e Social.
Nas páginas 163 e 164 de Sapos e estrelas, é de poesia que o autor trata. Não de qualquer poesia, nem da poesia em língua portuguesa, seja do Brasil, seja do Portugal amado. Lá encontramos lúcido comentário a respeito de sua admiração pelos haicais dos nipônicos, mais tarde superados em seu entendimento e predileção pela poesia chinesa, poesia filosófica e filosofia poética.
Se, nos poetas japoneses, ele vê graça, sugestão, ambiguidade ... os poemas às vezes são escritos, ou melhor, pintados – ó requinte de miniaturismo! dentre os chineses a poesia é feita de evocação visual. Assim, oferece-se em duplo simbolismo, no fundo e na forma, pura emoção visual.
A conclusão, menos óbvia do que esperado, desfralda o sentimento mais profundo do leitor Machado Coelho:
A poesia chinesa! Não basta lê-la apenas, é preciso senti-la também, pois ela reclama do leitor que seja igualmente um poeta em potencial, isto é, um emotivo, um animista, capaz ao simples toque do verso de emprestar a sua própria alma à alma das coisas.
Cada nova seção, mais se revela o colunista. Ora é a resposta a um desavisado gramático, sobre o significado de uma palavra; ora críticas a um homem de ideias acanhadas e tarefas secundárias: catalogações, bibliografias, polianteias. A vítima é Laudelino Freire, por causa de seu Regras práticas de bem escrever.
Não é só isso, todavia, que mostra a pouca afeição do autor de Sapos e estrelas pelos gramáticos. Prova-o trecho da seção publicada em 30 de dezembro de 1952, terceiro tópico:
É o mal dos gramáticos. Sabem como se escreve, mas não sabem escrever. Também os eunucos sabem como...mas não podem, com o que, talvez, lucre a espécie.
Adiante, uma verdadeira profissão de fé, como se ela estivesse ausente em alguma das páginas anteriores: Arte é trabalho, sofrimento, esforço, angústia... esse sentimento se completa, diante da afirmativa de que universitário ou autodidata, o homem é obra de si mesmo.
Diferente do que se poderia distraidamente e à primeira vista suspeitar, o fato de não ter logrado o grau do ensino superior não gerou, nele, amargura ou ressentimento. Ao contrário, fê-lo engrandecer-se pelo amor aos livros e à leitura. Não como exercício destinado a qualquer avaliação quantitativa, mas ganhando profundidade no estudo dos problemas e assuntos, e prazer e desfrute na apreciação das letras, das artes e da ciência.
Os candidatos a poeta ganham de Machado segura e experiente orientação. Aparentando, inicialmente, rejeição à novidade, logo o autor torna claro seu conceito.
Ora, o verdadeiro poeta não é aquele que procura apenas novas fórmulas, nova técnica ou nova interpretação da poesia. Não é também aquele que trata de aposentar o espírito clássico, de relegar a plano inferior as velhas formas consagradas. A poesia é um perpétuo rodízio. Ela não se afasta jamais de sua órbita. O pensamento é a pedra de Sísifo, a mudar eternamente de lugar, mas voltando sempre ao sítio anterior na base ou no alto da montanha.
Como remate a essa importante lição, lê-se:
Ora, para sobreviver como herança do passado, expressão do presente e mensagem do futuro, é preciso que a poesia em todas as épocas “sofra” a influência do eternamente humano, isto é, do amor e do ódio, da alegria e da dor, da realidade e do sonho.
É oportuno inserir aqui duas trovas oferecidas por Machado a seu amigo José Coutinho de Oliveira, reveladoras do seu talento poético, não tivesse bastado a tradução de poemas de Paul Verlaine,
Lembranças todas da vida
Adormeci no meu ser,
Mas tu, Bela Adormecida,
Não te posso adormecer...
Esqueci tudo no mundo
Que me fazia sofrer;
Teu olhar triste, profundo
Esqueci-o de esquecer...
Não falta a Machado Coelho o conselho ao amigo poeta jovem Mário Faustino, tão inteligente, tão menino... Moço que depois de Colombo anda agora a descobrir a América.
A interlocução quase paternal – e talvez por esse traço mesmo – com o vate piauiense morto em acidente aéreo nos Andes não dispensa a fina ironia, apenas dando a ela roupagem de veludo:
Quando converso com ele saio também convencido de que a beleza da vida não reside na sabedoria da velhice, mas nos erros
da juventude.
Generalizando para toda a geração a que o talentoso poeta e jornalista pertencia:
Feliz a mocidade, que não precisa dos óculos de Pangloss para ver o mundo cor-de-rosa. Depois, que entusiasmo, que pletora, que euforia, nesse Mário das “Cartas americanas”. Sente-se que o rapaz está admirado, fascinado, mais ainda, arrebatado no carro de fogo do deslumbramento.
Mas o gesto generoso em relação ao poeta do verso sinto que o mês de maio me assassina não se esgotava ali, se não que era genérica, também. Por isso, a oferta de parte de sua (modesta, no dizer inverídico do proprietário) biblioteca para os que desejassem proceder ao estudo analítico do vocabulário de Rabelais, mescla da linguagem erudita e do falar plebeu de vários povos.
O desencanto com a política, vemo-lo em várias passagens do Sapos e estrelas. Numa delas, refere-se ao tenente Landri Salles, ardoroso, idealista, sonhador e legendário comandante da Brigada de Operações no Norte. Mandado para o Piauí, para alinhar aquela unidade federativa à nova ordem da Revolução de 1930,
O tempo, mestre dos mestres, encarregou-se de polir-lhe devagar as arestas e o bravo revolucionário deve estar hoje tão desiludido quanto o autor destas linhas, que, dormindo, jamais caiu da rede, mas, acordado, já caiu das nuvens...
Imperdoável seria o olvido de algumas outras passagens, pelos que elas têm de marcantes, tanto do pensamento do autor, quanto da memória dos que um dia tiveram – e terão, espero – a ventura de ler-lhe a prosa correta, fácil e fluida. Duas delas são destacadas abaixo.
Quem quer que ele seja, porém, irá receber grandes, espontâneas homenagens por parte dos amigos e admiradores, eternos abissínios a apedrejarem o sol que se põe.
Aí, a condenação dos áulicos de todos os tempos, remetendo à prece de Camilo: Deus me livre dos meus amigos, que de meus inimigos eu me livrarei!
A outra compara candidatos e eleitos à lagarta e a borboleta, distintas num só todo verdadeiro.
Nem esta responde por aquela, nem esse por aquele, morrendo os compromissos dos dois, melhor, dos quatro indivíduos, na campanha e no casulo.
Machado, um confessado agnóstico, mostra-se igualmente cético em relação à política.
Tão grande e tão difuso o interesse do autor de Feitiço, que desfilam em seus textos pessoas e personagens por demais estudados (Quixote, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Osvaldo Orico, Camões, Dante, Michelangelo, Getúlio Vargas etc.), quanto outros, que só os iniciados na crítica literária ousam abordar. Alguns desses: Renan, Daudet, Voltaire, Rainer Marie Rilker, Maurice Rostand, Ortega y Gasset...
Para finalizar, a lição aprendida por todo humanista de boa cepa:
...a verdade pode ser transformada em sentimento, isto é, a ciência em poesia, sem que o fundo sofra com a forma.
Ouvi algo semelhante, de um homem da ciência biológica, o professor Tetsuo Yamane:
Ciência e arte buscam a mesma coisa – a beleza!
Machado Coelho dedicou sua vida a esse belíssimo propósito – se não o mais alto – humano – buscar a beleza. Resultado disso é a obra construída, de que dei aqui pálida amostra.
Muito mais haveria que escrever, se tentássemos – ao menos tentássemos – ser exaustivos. Como esse não é o objetivo do presente texto, parece-nos bastar a indicação de outros textos escritos por Inocêncio Machado Coelho. É o que será feito.
Obras de Machado Coelho
Feitiço na literatura na arte na vida
Sapos e estrelas
Os Gallé de Antonio Faciola
Vida, morte e ressurreição do Art Nouveau
Velhos santos do Pará
As diáfanas opalinas
A prata religiosa
Os paliteiros de prata
A medalhística médica do Pará
Livros de biblioteca
Relógios de estimação
O livro de barro
A angústia de Papini e a redenção do diabo
Banhos de cheiro, defumadores e pós de milonga
Notas
[1] Célia Coelho Bassalo, a filha de Machado, informa-me ser querosene a poção usada. Também me informa que, à falta da camisa, seu pai sempre portava um pano cobrindo-lhe os ombros.
[2] COSTA, Selda. V. da. Por rios amazônicos: conversas epistolares com Nunes Pereira. IN Vozes da Amazônia. Investigação sobre o Pensamento Social Brasileiro. CNPq/EDUA, 2007. Pp.270-308.
[3] LOUREIRO, J.J.Paes. Central café – o tempo submerso nos espelhos. São Paulo, SP, 2011.
[4] PINTO, Lúcio Flávio. Centenário sem brilho. Jornal Pessoal, junho 2009- 2ª quinzena, p.10.
[5] BASSALO, Célia Coelho. Machado Coelho: o amador de seus livros. Palestra proferida na Academia Paraense de Letras (1999)
[6] Tomo a expressão, emprestada do próprio Machado Coelho, ao referir-se a Plínio, o Moço. MACHADO COELHO. Sapos e estrelas. Fundação Minerva, Belém PA, 2005. p. 229.
[7] COELHO, Machado. Sapos e estrelas. Fundação Minerva. Belém, PA. 2005. p.225.
[8] SARAMAGO, José. Intermitências da morte. Companhia das Letras, São Paulo, SP. 2005.
[9] A Província do Pará, dos Diários Associados, foi dirigida pelo poeta, ensaísta e jornalista paraibano Romeu Mariz (☼1887-+1962).
[10] Frederico Barata. Cf. COSTA, Selda V.. Op. cit. p. 276.
[11] O vocábulo italiano corresponde ao português traidor.
[12] BASSALO, Célia Coelho. Orelha do livro O feitiço na literatura - na arte- na vida. COELHO, Machado. Paka-Tatu, Belém, PA. 2009.
[13] COELHO, Machado. Manuel Lobato, o escritor e o homem. Revista de Cultura do Pará, ano 5, nos 18 e 19- janeiro/junho-1975.
[14] COELHO, Machado. Machado de Assis. S/d, 1939. MOURA, J.R. O Machado de Assis de Machado Coelho. Revista Novidade, ano III, número XXVIII, Belém, PA. Abril de 1942.
[15] COELHO, Machado. Doença e literatura de Machado de Assis. Novidade, Ano III, nº XXIX, maio, 1942.
[16] COELHO, Machado. Revista de Cultura do Pará, ano 5, nºs. 18 e 19 – janeiro/junho-1975, Belém, PA.
[17] O texto foi lido na sessão comemorativa do centenário de Lobato, em 8 de junho de 1975, no Conselho Estadual de Cultura do Pará.
[18] COELHO, Machado. Feitiço. Editora Paka-Tatu, Belém, PA. 2009.
[19] Idem, p. 21.
[20] COELHO, Joaquim-Francisco Machado. Aos leitores, IN Sapos e estrelas, p.s/n
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* Este texto integra a coletânea Vozes da Amazônia III. Organizada por Élide Rugai Bastos e Renan Freitas Pinto, a obra foi editada pela EDUA, MANAUS, AM, em 2016. Páginas 315-341.
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