José Alcimar de Oliveira*
A Primeira Lei Fundamental da Estupidez Humana declara sem ambiguidade que “Todo mundo subestima, sempre, o número de indivíduos estúpidos em circulação” (Carlo M. Cipolla).
01. A epígrafe deste breve artigo foi extraída do livro As leis fundamentais da estupidez humana, escrito pelo historiador da economia italiano Carlo M. Cipolla (1922-2000) e sobre quem um conhecido físico, Carlo Rovelli, também italiano, escreveu: “o humor sutil de Cipolla fez deste livro um clássico na Itália. Hoje, com as tendências mundiais atuais, lê-se como humor negro” (sic). Quanto a mim, a verdadeira cor do humor reside em seu poder filosófico, como escreve Nietzsche, de subtrair à estupidez sua “boa consciência”, inclusive a de extração religiosa, como a da piedosa velhinha que trouxe lenha para alimentar a santa fogueira a que foi condenado Jan Huss que, impotente, exclamou: sancta simplicitas!
02. O senso comum no qual estamos todos enraizados é o espaço da disponibilidade para a estupidez humana. Não dispomos de mecanismos de objetivação científica, menos ainda de fundamentação filosófica, para concluir sobre o aumento ou decréscimo do coeficiente da estupidez humana. Sim, humana, porque não há registros conhecidos de estupidez entre os mamíferos não humanos. Contrariando o alegado e tido por bem partilhado bom senso cartesiano, a estupidez humana nunca perdeu força ao longo da história e tem razões que atravessam credos, raças e classes. Como escreve Cipolla, “a possibilidade de determinada pessoa ser estúpida independe de qualquer outra característica dessa pessoa”.
03. Nos dias que correm a sociedade digital conferiu à figura estúpida um poder sem par na história humana. Anticartesiana, e mais ainda antidialética, a estupidez digital como um tipo de infopolvo deita globalmente seus tentáculos, flexíveis, ventosos, sobre corações e mentes, e num alcance e velocidade como jamais imaginou a razão humana. Para aqui recorrer à linguagem paulina, a estupidez digital é hoje a materialização consumada do “príncipe do poder do ar” descrito em Ef 2,2. Segundo Cipolla, “a pergunta que pessoas sensatas fazem com frequência é como e por que pessoas estúpidas conseguem alcançar posições de poder e relevância”.
04. No parorama filosófico atual Alain Badiou, marxista, seria o pensador mais indicado para retomar o tema paulino do “príncipe do poder do ar” associado à universalização da estupidez digital. Ele, que se reconhece como “hereditariamente ateu”, desde os “quatro avós preceptores”, “educado no desejo de esmagar a infâmia clerical”, descobriu mais tarde nas epístolas paulinas “textos curiosos, cuja poética impressiona”. Ao atribuir a São Paulo a fundação do universalismo, Badiou arrisca a comparação que faz de Paulo “um Lênin, do qual o Cristo teria sido o Marx equívoco”. Se esse desafio chegar às mãos e mentes filosóficas de Badiou, poderia ser o tema de um seu possível (e desejável) Terceiro manifesto pela filosofia.
05. Comum aos mamíferos humanos, o senso comum, que abriga o universo da ignorância, e pior, da estupidez, é aquele constructo que na linguagem do materialismo histórico e dialético Marx denomina de nosso “ser genérico”. Na ausência de mediações críticas, que possibilitam a transição do senso comum (ser genérico) ao bom senso (consciência crítica) o ser humano é facilmente, sem resistência cognitiva, capturado pelo estúpido pensamento de rebanho. Ou, para trocar a questão em miúdos, é encurralado pela gadificação cognitiva. A férrea lógica da estupidez costuma afrontar e desestabilizar todos os princípios da razão.
06. É exatamente nessa terra de ninguém e sempre disponível que a extrema direita faz com êxito a letal semeadura da ignorância e da estupidez. O perigo maior nesse processo é subestimar o poder da ignorância e da estupidez e o quanto esse poder ganha em intensidade e extensão ao se apropriar dos dispositivos digitais. O velho Francis Bacon ao afirmar, em seu otimismo epistêmico, que “conhecimento é poder” não levou em conta o poder da ignorância e da estupidez socialmente produzidas. A razão humana, por maior que seja sua capacidade de prever e proteger-se do erro, muito pouco pode diante da ação imprevisível de um indivíduo estúpido.
07. Falar hoje em “mal-estar na cultura” soa eufemístico. Segundo Byung-Chul Han, “Freud poderia ter afirmado então que o capitalismo representa a forma econômica na qual o ser humano, na condição de besta selvagem, pode viver e aproveitar melhor sua agressividade”. Para aqui recorrer ao irredento Wilhelm Reich, o mundo capitalista da estupidez digital, inseparável da barbárie social e da catástrofe ambiental, é hoje a verdadeira “peste emocional da humanidade”. Seu livro Escuta, Zé Ninguém merece ser lido e discutido em grupo. É uma leitura a mais atual nesses tempos de regressão cognitiva potencializada pelos dispositivos digitais.
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*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), onde concluiu e defendeu seu mestrado e doutorado. É também teólogo heterodoxo e sem cátedra, ocupa a segunda vice-presidência da Associação dos Docentes da UFAM (ADUA – Seção Sindical) e é filho orgulhoso do cruzamento dos rios Solimões (em Manacapuru – AM) e Jaguaribe (em Jaguaruana – CE). Em Manaus – AM, março de 2025.
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