A meu critério, pobre que seja, parece-me tolice afirmar que vivemos um mundo enlouquecido. O mesmo terão dito os contemporâneos do primeiro voo; os que souberam da existência de terras e gentes do outro lado do oceano; os que viram a primeira Bíblia impressa na máquina doida de Gutemberg. Admitir alguma consistência na afirmação, repito: o meu pobre entendimento não permite. Se desejarmos qualificar as alterações por que passa o Globo, devemos apreciar a velocidade com que tais mudanças ocorrem, e sua abrangência. Daí o conceito de sociedade líquida, onde e quando tudo se desmancha no ar. Vocês sabem que esta constatação não é minha, nem foi resultado se não da observação acurada de Baumann.[2] O sociólogo polonês ratificando a afirmativa de um certo filósofo alemão. A mudança não encontra empecilhos. Ela afeta todos, em todos os lugares e em todas as oportunidades.
Querem ver um ambiente em que a substituição praticamente passa uma borracha no que parecia indelével sem que isso cause o menor espanto? É no vocabulário.
De um tempo em que se dizia de uma jovem bonita que era um brotinho; quando uma coisa agradável chamávamos de supimpa, a coisa espantosa era chamada formidável, a diferença profunda, absoluta quase, ganhava o epíteto de abissal, o antiquado recebia o nome de vetusto, mal posso digerir certos termos atuais. Refiro-me, em especial, a governança, compliance, resiliência, empoderamento e expressões pernósticas e insossas, como encarar de frente, zona de conforto, dever de casa. Fico só nessas, porque me interessa explorar o conteúdo de um termo que, nestes tempos tão pobres, deu de frequentar e projetar-se das bocas mais insuspeitadas.
Fantástico e seu feminino, hoje, são palavras usadas para dizer quase tudo de que se gosta. Se o espetáculo foi bonito, de nada adiantará ter-se baseado em fatos reais, num cenário real, com pessoas vivas – ele será tido por alguns por fantástico. Isso, óbvio, não poupa os escritores, produzam eles literatura de ficção ou não. Ou a produzam sem qualidade.
No entanto, fantástica é palavra que tem raízes em fantasmas, falsas imagens, situações impossíveis de entender dentro dos limites de nossa percepção sensorial. Imagino como Ariano Suassuna falaria desse termo, cansado de tanto ouvir o elogio supremo que muitos sacam de seu alforje mal fornido de expressões: fantástico!
O fantástico, portanto, é tudo quanto envolve elementos inverossímeis, distantes da realidade palpável, habitantes do mundo sobrenatural. A literatura não foge a essa regra. Daí conhecerem-se obras merecedoras do adjetivo, e não propriamente porque sejam de qualidade superior. Pode haver uma obra de literatura fantástica prenhe da melhor qualidade, quanto pode ocorrer de nela não se encontrar nada que agrade ao leitor. Mesmo o menos exigente deles.
É para especular sobre a presença do fantástico na obra de nosso homenageado deste ano, que vim aqui.
2. Particularmente, tentarei mostrar-lhes ideias que venho juntando, desde que li o conto Sorôco, sua mãe, sua filha, um dos que compõem o volume Antes das Primeiras Estórias, publicado post-mortem do nosso homem de Cordisburgo.
A coletânea publicada em 2011 reúne cinco contos publicados na revista O Cruzeiro e no diário O Jornal, entre os anos 1929-1930.
Quatro são as estórias (como as chamava o autor) que completam a coletânea a que se integra o Sorôco: O mistério de Highmore Hill, Cronos kai anagke(Tempo e destino), Caçadores de camurças e Makiné.
A leitura do conto acima mencionado ocorreu-me, logo após o teatrólogo John Weiner ter feito sua primeira intervenção, em uma das reuniões do grupo organizador do conjunto de pequenos eventos de que este seminário é parte. Após ler o texto em arquivo aberto na tela do computador, assisti a algumas encenações disponíveis no Youtube ou em sítios localizados pelo Google. Textos adicionais ao que me serviu de mapa do tesouro – A literatura fantástica de Guimarães Rosa antes de Primeiras Estórias, de MARISA MARTINS GAMA-KHALIL, abriu-me as portas da vereda que me põe diante de vocês. Espero semear em boa terra, mesmo se a semente não for boa e se eu não puder adubá-la com ideias fertilizantes e sugestões quem sabe promissoras.
Confesso, porém, que não me move a simples e simplória intenção de apenas cumprir uma desobriga quase-profissional. Para isso existem os aposentados: para assumirem obrigações das quais nem sempre resulta bom produto.
Espero não seja o caso. Pelo menos, esforcei-me para ser assim.
Vamos ao que interessa, então.
Percebi, mal lidas as primeiras linhas do trabalho de Marisa, a dificuldade de um escritor – qualquer escritor, quem sabe qualquer artista de todas as artes – manter-se no mesmo nível, a partir do momento em que traz à luz solar o sinal do seu talento. Com ROSA, que ele mesmo mostrava o caráter mutante do ser humano, a ponto de hoje não sermos o que ontem fôramos, e a certeza de que amanhã seremos diferentes, não ocorreu algo incomparável.
Essa notícia nos é dada por MARISA, ao comentar a crítica feita por JANAÍNA SENNA, a própria organizadora da coletânea a que aludimos. Nela, fica patente o ainda escasso prestígio de que gozava o grande escritor mineiro de todas as minas, que ofereceu aos leitores algumas das melhores joias da literatura – quase dizia brasileira. Emendo-me a tempo: da literatura universal. Pois JANAINA fez questão de entregar a introdução crítica do livro a um não-especialista na obra de Guimarães Rosa uma vez que eles não teriam nada a dizer sobre o estilo do autor jovem. Ele tem mais a ver com Edgar Allan Poe do que com Rosa no ápice.[3]
Embora o comentário de MARISA não esconda certo desagrado com a apreciação da organizadora, dê-se a oportunidade de especular a respeito do propósito de JANAÍNA. Quando ela estabelece o confronto do ROSA autor jovem com o ROSA no seu ápice, transparece sua admiração e seu respeito pelo conjunto da obra do escritor. Nem me parece diminuidor o período em que GUIMARÃES ROSA ainda não tinha escrito seu GSV.
Se, como a professora da Universidade Federal de Uberlândia afirma no artigo publicado na revista Olho d´água (São José do Rio Preto, 4(1); 1-163, 29012), o autor dos contos era desconhecido do público brasileiro e tinha reunidos textos elaborados em seus primeiros anos de adultez, permitam-se os juízos da organizadora.
O que não pode ser perdido de vista, assim o entendo, é o fato de ali ter-se iniciado trajetória até certo ponto marcante na própria obra-prima de ROSA. É assim que entendo o diálogo entre Riobaldo e o diabo, um dos pontos altos de Grande Sertão: Veredas.
Ou haverá quem negue o caráter fantástico àquelas cenas descritas nas páginas narrativas do jagunço aposentado? Onde se teriam iniciado os passos do autor, para chegar à culminância, reveladora de seu parentesco literário não só com o Poe que encontrou na juventude quase adolescente, mas com Dante e Göethe?
3. O tempo desmancha-se no ar, como tudo quanto é sólido. Pode-se falar, sem fantasmagorias, em solidez do tempo? Sabe-se lá... É preciso, portanto, estreitar as veredas por onde vimos caminhando. E se abre a possibilidade de ouvir, não o canto melancólico da mãe e da filha de Sorôco, mas cantarmos todos – uns, de alegria, pelo alívio de não mais me ouvir; outros, eu em especial, pela frustração resultante de minhas parcas qualidades de palestrante.
Contar-lhes um pouco sobre o conto de ROSA é o que conta agora. Tentarei fazê-lo, e desde logo advirto que me tornarei mais inteligível aos que assistiram ao belíssimo espetáculo que os atores tão bem dirigidos pelo John Weiner nos proporcionaram.
Eis que Sorôco, viúvo e cansado da lida diária decidiu mandar para longe a mulher que o deu ao mundo e a filha que ficara órfã de mãe. Para longe – é bom esclarecer, não apenas uma referência geográfica, espacial. A vida, quem sabe lhe parecera, a partir do embarque das duas, um fardo pesado demais para suportar.
Benquisto na cidade, distante de Barbacena, para onde as duas mulheres foram desterradas, Sorôco recebia da população um misto de piedade, respeito e reserva. Todos dele se apiedavam, pelo drama que o abatia: mãe e filha dele tinham enlouquecido. Pelo menos, assim eram elas tidas. Sempre será bom lembrar que, à época (e falamos das primeiras três décadas do século XX), o tratamento dispensado à loucura não oferecia mais que dois destinos: o afastamento ou choques elétricos. O ver o mundo diferente – que isso é o que penso da loucura, até que um psiquiatra me mande internar, é coisa de nossos tempos, apesar de tudo.
Pois bem: a tristeza e o abatimento que cimentavam o trajeto entre a casa de Sorôco e a estação ferroviária tinham o testemunho de boa parte da população do lugar.
Ali estavam os que tinham piedade pelos sofrimentos do homenzarrão, quase sempre calado e arredio. E aqui está um sinal da reserva com que ele se comportava. E que fazia dos outros também seres reservados em relação ao filho e pai devotado. Todos o respeitavam, também. Quem sabe até o admiravam, enxergando o estoicismo em que incidia, como cercado pelo alto e por baixo, na vida cheia de altos e baixos que é a vida de todo e qualquer ser humano.
Enquanto o trem não chegava, quase ninguém se aproximava. De Sorôco, uma espécie de Caronte sem cadáveres, nem da moça e de sua avó. Esta, metida em roupa negra, véu na cabeça, como a esconder o fácies inescrutável dos que perdem a razão. A outra, vestes coloridas, olhar perdido no futuro que ela era incapaz de ver impossível.
Os circunstantes, curiosos, talvez um pouco amedrontados; talvez apenas compadecidos. A cena não se podia dizer fosse generosa em porções de alegria – ou esperança.
Eis que todos ouvem como sussurros tímidos vindos do lado da mais moça. Não tardou a que ela, olhos sempre postos no nada, alteasse o tom da voz. E soltou a cantoria, desconexa, melancólica, ao nada também dirigida. Não se estranhou que ela se dirigisse à lua.
Demorou pouco, até que se ouvisse também a voz da mais velha. Pouco cantaram as duas. O trem chegou, as vozes de avó e neta foram levadas para dentro de vagões-cadeia, e pouco a pouco foi deixando a cidade. Barbacena era o destino daquelas vozes cuja harmonia era feita da insensatez.
Sorôco voltou pra casa. Acompanharam-no todos os que tinham ido à estação. E que não se furtaram a engrossar o coro que ele iniciou. Cantavam a mesma e destrambelhada cantiga que as insanas deixaram.
Vocês vêm algo que pode ser chamado de fantástico, nesse conto? Não sei bem porque, mas eu vejo – e muito!
[2] BAUMANN, Z. Que, aproveitando a expressão contida no Manifesto Comunista, criou o conceito.
[3] GAMA-KHALIL, A literatura fantástica de Guimarães Rosa antes das Primeiras Estórias, COMPLETAR
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*[1] Palestra proferida na Semana Mundial do Livro, 22/25 de abril de 2019, em Manaus, AM.