Quando meu fraterno amigo prof. PAULO EMÍLIO MARTINS me convidou a participar deste oportuno e indispensável seminário, imaginei estabelecer um paralelo entre o amazonense que dá nome à fundação que dirijo e o nordestino que venceu fronteiras e brilhou no Velho Mundo, e no Mundo.
Logo percebi não ser apropriado traçar paralelo entre pessoas que mantinham um encontro por suas idéias e propósitos. Sonhos, seria melhor dizer.
Por isso, tentarei, nos poucos minutos que me foram concedidos, destacar os pontos que aproximam DJALMA DA CUNHA BATISTA e JOSUÉ DE CASTRO. Antes, porém, gostaria de deixar marcados alguns aspectos relevantes para a compreensão do tema, que distinguem os dois estudiosos entre si, ainda mais porque, embora relevantes, não esmaecem a proximidade – diria até, ignorando o tempo e o espaço de cada um, o convívio ideológico e intelectual dos dois pensadores.
Enquanto JOSUÉ nasceu em área marcada pela sequidão e, em conseqüência, pela dificuldade de produzir alimentos, DJALMA veio ao mundo no que a literatura tem chamado de País das águas, onde a sobrevivência humana conta com a cumplicidade da própria natureza.
Para JOSUÉ, o destino reservou missões internacionais que o fizeram extrapolar as fronteiras nacionais, ao passo que a vida de DJALMA foi toda vivida na província, sem que isso tenha impedido seu pensamento de superar as barreiras nacionais.
JOSUÉ DE CASTRO, portanto, é homem do Brasil da primeira hora. DJALMA BATISTA nasceu naquele pedaço do Grão-Pará e Maranhão que só tardiamente se tornou Brasil. Referência apenas histórico-geográfica, não obstante merece menção.
Permitam-me, agora, buscar os pontos em que penso esteja estimulante e desafiadora aproximação entre ambos os cientistas.
O livro Geopolítica da fome está para JOSUÉ, como O complexo da Amazônia está para DJALMA. Se à obra do pensador nordestino não faltaram contribuições para um verdadeiro processo de desenvolvimento do País, a Amazônia e o Amazonas em especial receberam de DJALMA contribuição indispensável.
É em cada um desses livros que estão as linhas-mestras da análise que os dois fizeram, ambos preocupando-se com o problema do desenvolvimento. Eis aí, portanto, o primeiro traço de união. O médico pernambucano se ocupava de tema grato ao médico (e aqui está um segundo elo) amazonense.
A aproximar ainda mais JOSUÉ DE CASTRO de DJALMA BATISTA, o fato de que as preocupações por eles expressa – e impressamente também - registradas permanecem de atualidade exasperante.
Entre ambos, o que a geografia física teria podido impedir, o pensamento e a honestidade intelectual provocaram. Haverá uma geografia intelectual, em que o espaço perca relevância – ou simplesmente desapareça? Está-se por saber...
No prefácio da obra de DJALMA, o professor ARTHUR CÉSAR FERREIRA REIS, que perlustrou esta Casa de ensino e pesquisa por muitos anos, destaca o objetivo do autor conterrâneo:
(Djalma Batista)“... pretende propor a Amazônia
como uma realidade física sobre que os homens,
em especial os brasileiros,vêm realizando a ta-
refa ousada, difícil, de sua conquista e de
sua incorporação ao ecúmeno universal”.
Com isso, o ex-governador do Estado do Amazonas situa o contexto e o propósito da obra de DJALMA: o estudo das relações do homem amazônico com o ambiente físico que o cerca.
Adiante, ARTHUR REIS destaca a organização d’O complexo da Amazônia,
“Nas três partes em que (o autor) dividiu seu trabalho,
de gabinete e da pesquisa direta, no campo, procurou
analisar o espaço e a humanidade, o duelo com a natu-
reza e, por fim, o desafio da esfinge”.
Diferente não terá sido o interesse de JOSUÉ, ao brindar os estudiosos brasileiros e do Mundo com sua Geografia da Fome, depois sua Geopolítica da Fome. Essa íntima relação do homem com seu meio físico, presente na observação do estudioso pernambucano, também se encontra no amazônida nascido em Tarauacá, quando essa cidade era parte do Estado do Amazonas. Já aqui se observa quanto estavam os dois imbuídos de motivação que só mais tarde se chamaria ambientalista, ecológica.
Se lembrarmos que somente depois da Eco-92 nos demos conta da importância das relações homem-ambiente físico, teremos que fazer justiça aos que, em 1946 e 1976 tratavam do assunto. Mais importante, da forma incisiva e clara como o fizeram.
Para concluir as perspicazes observações do ex-professor da Escola Brasileira de Administração Pública-EBAP, que governou o Amazonas, recorra-se às palavras finais do prefácio:
“O que ele pretende é, na análise fria a que submeteu
a terra e o homem, propor uma orientação nova, que
resulte na decifração da esfinge”.
A esfinge, para ARTHUR REIS, é a própria Amazônia, com sua exuberância natural, seus segredos e mistérios, sua gente e sua história. Sobretudo, a ignorância sobre o que ela é; o que pode oferecer; o que precisa desvendar...
Ao tratar de “Comida, problema nº 1” (1976: 62), DJALMA BATISTA vai buscar em JOSUÉ o fundamento de sua exposição, como se percebe do trecho abaixo:
“A análise biológica e química da dieta amazônica
revela um regime alimentar com inúmeras deficiên-
cias nutritivas”.
Quando, adiante, DJALMA BATISTA se apóia em CAIO PRADO JÚNIOR, retoma argumento caro ao autor da Geografia da Fome: a prevalência dos interesses exportadores, em detrimento dos cuidados alimentares da população brasileira. (id: 62).
Também remete a JOSUË a afirmativa colhida em ARISTÓTELES, segundo a qual a vida é a nutrição.
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Não é só nessa passagem, porém, que JOSUÉ DE CASTRO se faz presente na obra de DJALMA. Ao referir-se às carências, percebe-se a nítida aproximação com o que o autor nordestino chama de fome epidêmica, aquela causada não pela falta de alimentos, mas pela ausência de nutrientes indispensáveis à vida e à saúde humanas. Muito ilustrativo o subtítulo a que o estudioso amazonense subordina sua abordagem: Importantes são sobretudo as carências – eis o subtítulo. (1976:77). Aqui, constata-se certo movimento circular, eis que JOSUÉ (2001:27) se abeberara no amazonense ARAÚJO LIMA, para referir-se à área amazônica, uma das cinco em que o médico-diplomata analisou a dieta do brasileiro.
A referência específica à geografia humana, fonte de sua preocupação, faz de DJALMA um parceiro de JOSUÉ, como se constata no primeiro tópico do Capítulo 6 – Do homem perante a geografia. Como negar a existência de, mais que uma ponte, certa identidade de preocupações e de propósitos entre os dois eminentes estudiosos da fome brasileira?
Vale a pena transcrever o trecho a seguir:
“Em vez de considerar a Amazônia segundo os
tradicionais critérios da geografia física (zonas
fisiográficas) ou da geografia política nacional
(Estados e Territórios) ou continental (países
independentes ou a caminho disto), prefiro
encará-la, nesta altura, de acordo com a
geografia humana, considerando a loca-
lização de seus habitantes.”(1976:85).
As observações de JOSUÉ a respeito do contraste entre a generosidade da natureza e o deficiente aproveitamento da abundância da ictiofauna, por exemplo, reproduz-se na percepção do professor e pesquisador amazonense.
Comparem-se, por exemplo, as palavras de ambos.
“Há uma grande riqueza de peixes nos rios,
nos igarapés, nas lagoas do Amazonas, mas
não existe a pesca organizada que aproveite
racionalmente tal riqueza natural”. (2001:56).
É o autor de Geografia da fome quem o diz.
Eis como o amazonense escreve:
“Ainda há a assinalar a má distribuição do
pescado nos mercados da Amazônia, especialmente no de Manaus, que só é ser vido por espécies de água doce. Quando das vacas gordas, isto é, na vazante dos rios, em que os peixes saem dos lagos, onde se refugiam nas águas altas, a pesca é abundante, não existindo consumidores para toda a quantidade exposta à venda”.(1976:179).
Se JOSUÉ é explícito em sua defesa da reforma agrária, DJALMA o faz de forma implícita ao apontar providências que, a seu ver, redundariam na melhoria das condições alimentares da população amazônica, muitas das quais não se viabilizariam, sem que ocorra
‘...um processo de revisão das relações
jurídicas e econômicas, entre os que
detêm a propriedade agrícola e os que
trabalham nas atividades rurais (2001:286,
como advoga a concepção de JOSUÉ DE CASTRO.
Parece-me haver, portanto, muito a aproximar os autores de que tratei aqui.
Inicialmente motivado a traçar um paralelo, convenci-me de que a figura geométrica mais adequada à abordagem da contribuição dos dois ilustres e saudosos brasileiros é um triângulo. Partindo ambos da mesma base, encaminharam-se no sentido de um objetivo comum. É nesse vértice oposto à base inicial que vão dar a dedicação, a análise criteriosa dos fatos e relações e o amor à humanidade revelados em toda a vida de JOSUÉ DE CASTRO e DJALMA BATISTA. Trata-se, imagino, de um verdadeiro triângulo virtuoso.
Muito mais pode ser encontrado na obra O complexo da Amazônia, por isso que deixo este exemplar de sua edição mais recente, à disposição dos interessados.
Muito obrigado.
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* Texto publicado em O Brasil em evidência: a utopia do desenvolvimento. Rio de Janeiro, FGV/PUC-RJ, 2012, pp. 25-29.
O autor é Diretor-Executivo da Fundação Djalma Batista. Professor titular aposentado da Universidade Federal do Amazonas, de cujas faculdades de Estudos Sociais e Direito foi diretor. Dirigiu, ainda, o Centro de Estudos e Pesquisas Sócio-econômicas (CEPESE), da UFAM. Foi Superintendente do Instituto Euvaldo Lodi - AM, Secretário Municipal de Administração de Manaus, Secretário-executivo da Superintendência dos Serviços Médicos do Interior do Amazonas – SUSEMI-AM, Coordenador Administrativo da Associação de Crédito e Assistência Rural do Amazonas - ACAR-AM. É autor dos livros: Memórias talvez precoces, Reflexões de um eterno aprendiz, A república dos anões, Como funciona a Administração, Do ABC ao planalto - sonhos e frustração, O desafio amazônico. Tem textos publicados nos seguintes livros: Djalma Batista – um humanista na Amazônia, Relatos subversivos - 1964 os estudantes e o golpe no Pará, Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará - 40 anos da turma de 1965, Meios de comunicação de massa e sua regulação. É articulista de A Crítica, Manaus-AM, desde 1971; e de O Liberal, Belém-PA, 2003/2016.